Paralelo 29

SABRINA SIQUEIRA – Opinião: Bovarismo coletivo

SABRINA SIQUEIRA

Jornalista*

Há alguns dias, um famoso e jovem youtuber causou polêmica no ambiente virtual por sugerir que os clássicos da literatura não deveriam ser obrigatórios nas escolas.

Antes de promover um linchamento (ou cancelamento – termo atual para quem vacilou online) ao criador de conteúdo, vale lembrar que essa opinião não é nova e circula nas rodas de conversa de educadores, entre eles alguns literatos e beletristas defensores do “deixem que leiam Harry Potter”, há tempos.

O próprio youtuber contou que estava somente respondendo a um “meme”, uma brincadeira que sugeria criar uma treta literária.

DIOMAR KONRAD – Crônica: O endividado

Fato é que essa discussão sobre a importância da leitura dos clássicos por parte de adolescentes  revela a opinião que parte da sociedade tem de que a literatura é algo hermético e empoeirado na última prateleira da estante, quando na verdade a literatura está entre nós (Amém!) e felizmente sendo apropriada por outras áreas de conhecimento e entretenimento.

Por exemplo, o pai da Psicanálise, Sigmund Freud, se inspirou na tragédia grega de Sófocles, Édipo Rei, para nomear o seu talvez mais conhecido conceito: o “Complexo de Édipo”, cujas particularidades passam pelo apego excessivo à mãe e rivalidade ante à figura paterna.

Outro termo usado nas áreas da saúde e comportamento é o “bovarismo”, proposto pelo filósofo francês Jules de Gaultier e inspirado na personagem literária Emma Bovary, protagonista do romance realista de Gustave Flaubert, Madame Bovary

DIOMAR KONRAD: Crônica: O provedor

A obra foi um escândalo ao ser publicado, em 1857, sendo que o escritor chegou a responder processo por ter criado uma personagem feminina adúltera, o que chocava os modelos românticos de até então.

Com o escândalo em torno do processo de Flaubert pela criação de uma personagem polêmica, o termo bovarysme passa a ser registrado, a partir de 1865, como verbete dicionarizado da língua francesa.

Já o bovarismo – e aqui não tenho nenhuma pretensão de discorrer sobre o aspecto clínico porque não sou da área da saúde ou cientista comportamental – consistiria em viver em uma idealização melhorada da realidade, acreditando em seus próprios termos.

Seria a característica de perder a conexão com o real e uma tentativa de moldar o cotidiano com aspectos da ilusão criada para si, tal como a personagem de Flaubert, que, desconte com a rotina interiorana, busca a felicidade a partir de relações extraconjugais e de mimos de vestuário.

DIOMAR KONRAD: Crônica – A Abstenção

E é esse flerte do bovarismo com o negacionismo do que é real, válido e postulado pela ciência, que parece ser a base do fanatismo negacionista que enfrentamos enquanto nação.

Se bobear, estamos passando por um caso de bovarismo coletivo que leva alguns a, teimosamente, insistir em tratamento precoce para Covid19 sem comprovação científica, que escolas estariam recebendo kits gays, que a terra seria plana, ou que vacinas alterariam o DNA humano!

E isso por se sentir superiores ao apoiar opiniões contrárias ao grupo que ocupava o poder anteriormente, e de repetir palavras de algum autointitulado guru que mora fora do país, ou de um ministro com passagem pela Universidade de Chicago, por exemplo.

O bovarismo ou essa tendência em ver a grama do outro como mais verde, também conhecida como “síndrome de vira-lata” nos ditos populares, poderia moldar comportamentos em uma terra árida de autoestima, como pode estar o país no momento, e assim deixar parte dos acometidos da característica propensos a concordar com modelos radicais de governabilidade, ainda que desprovidos de plano de governo ou background como gestores.

DIOMAR KONRAD – Crônica: A experiência

Provando que a literatura corre nas veias do organismo que somos enquanto sociedade, o escritor Lima Barreto pressentiu essa possível tendência ao bovarismo no Brasil da Primeira República. Na crônica “Casos de bovarismo”, Barreto escreve suas impressões sobre a recém-lida obra de Gaultier e comenta os aspectos do bovarismo, focando sua argumentação na realidade brasileira, perspectivada a partir da cidade do Rio de Janeiro.

A então capital do Brasil vivia a inserção na Belle Époque e, com isso, transformações urbanas e sociais.  Barreto entendeu a ideia do bovarismo como certo autoritarismo aliado à postura de falso moralismo.

Na esteira das denúncias sociais que Lima Barreto construiu em sua obra literária, o autor percebeu no bovarismo também um aspecto de egoísmo: enquanto galgaria para si uma imagem de patriota preocupado com a moral e os bons costumes, o bovarista não se apiedaria por parte da população estar em condições de miséria.


FABRICIO SILVEIRA – Opinião: Tolos, fraudes e militantes

No romance de Flaubert, o egoísmo de Emma está em assinar notas promissórias que lhe garantem luxo imediato, sem pensar que a família perderia tudo e que a própria filha poderia ficar desamparada.

Voltando à polêmica gerada pelo garoto Youtuber, ainda que o que é imposto poucas vezes resulte prazeroso, manter os clássicos da literatura no ensino de adolescentes pode trazer inúmeras vantagens, entre elas a capacitação em decodificar discursos tendenciosos e fake news, e o prazer de entender quando um termo usado em outra área de conhecimento provém do universo literário, como é o caso do bovarismo.

*Sabrina Siqueira mora em Santa Maria é jornalista com doutorado em literatura e podcaster do Literatura Oral.  

Compartilhe esta postagem

Facebook
WhatsApp
Telegram
Twitter
LinkedIn