Conhecida por sua sensibilidade artística, seja como atriz, seja como escritora e poeta, a jornalista Melina Guterres, Mel Inquieta, dá voz à inquietação de muitos.
Por isso, vários de seus poemas têm, inevitavelmente, contornos políticos. Uns mais explícitos, outros menos.
Na seleção que fez para o site Paralelo 29, Mel Inquieta fala de uma mulher negra, feminista e política que morreu assassinada por conta de sua defesa da população pobre, discriminada e excluída.
MEL INQUIETA: Cinco poemas e uma crônica sobre lugares
Um crime sem respostas
Em “Marielle”, a poeta homenageia a vereadora Marielle Franco, do PSOL do Rio de Janeiro, executada a tiros, juntamente com seu motorista Anderson Gomes.
O crime político que chocou o país, ainda não elucidado, completou três anos no último 14 de março.
Há uma série de perguntas sem respostas, sendo a principal delas “Quem mandou matar Marielle?”
Quem quiser conhecer mais a produção poética, literária e jornalística de Melina Guterres é só seguir Mel Inquieta no Instagram.
MEL INQUIETA: Três poemas e um manifesto em tempos covidianos
MARIELLE
Mulher negra da Maré,
Socióloga, guerreira, política
Fez da voz sua guerrilha
Marielle que luta tão bonita
Alimentou almas tão famintas
E partiu assim…
Brutalmente assassinada, executada!
Por acreditar em nós!
As mulheres têm sede de justiça
Marielle sua voz, vem e fica!
Não vamos te esquecer!
Não vamos nos calar!
Teu corpo tiraram de nós,
Tua luta seguirá…
Na nossa voz!
MEL INQUIETA: Dois poemas e uma cena para encerrar o Mês da Mulher
Ferroadas nos rumos da política brasileira
Já no segundo poema, “Urubus”, Mel faz uma crítica contundente ao caminho político que o Brasil resolveu trilhar nos últimos anos.
“Tenho o coração afivelado com grades que lembram a escravidão/Vejo a democracia em desconstrução/A vaidade sobrevoando a justiça”, escreve.
No terceiro poema, “Engasgos”, Mel Inquieta cospe fogo ao falar das mortes violentas, atribuídas a “balas perdidas” que não são tão perdidas assim.
Seu poema nomina vítimas, dá seus nomes para que não fiquem como meras estatísticas.
Também da violência de gênero, que vitimou mulheres trans em Santa Maria nos últimos anos.
E, por fim, vale um trocadilho: com seus favos de mel africano, a poeta manda às favas políticos e outros detentores de poder tratados como “heróis do momento”.
Com a contundência de um ferrão de abelha africana, o poema que se engasgou também é de capaz de engasgar tantos quantos ousarem duvidar do que as palavras são capazes.
Não há dúvidas que nessa colmeia de poemas há ferrões afiados e com veneno de abelha africana prontos para defender a democracia, a educação, a saúde, o meio ambiente, os excluídos, e, sobretudo, a vida.
Confira o poema “Urubus” na voz da autora.
Mel recita em homenagem ao Dia Mundial da Poesia
URUBUS
Tenho o coração afivelado com grades que lembram a escravidão
Vejo a democracia em desconstrução
A vaidade sobrevoando a justiça
Derrubando a nação
Petróleo e reservas florestais em leilão?
Cortes na saúde, na educação ?
Tenho o coração amordaçado
O meu grito sufocado
E até e-mail invadido por outra nação
Teoria da conspiração?
Vejo o olhar cansado dos humanistas
Uma luta em pequenas mídias
Gente que busca averiguar informação
E outra que se contenta com o que recebe
Não questiona, não critica, reproduz e reproduz
alienação !
Sinto que há problemas pra quem foge da cegueira.
Sinto um arrepio na espinha,
Sinto a bandeira em poucas mãos
E o sangue, o suor do brasileiro escoa, escorre, é roubado… em alguma lei “sangue-suga” votada numa quarta-feira do futebol… Goll
Uma facada nas costas, um mordida do drácula, judas em reprodução ao plim plim milionário Poderes sobre poderes, controles que nem sequer imaginamos… Nosso ouro, nossa dignidade vai… se esvai..
Urubus rondam, urubus atacam, urubus…colonizam!
Brasil colônia 2018
ENGASGOS
Hoje meu poema tá engasgado
Na cegueira alheia
Na falta de noção
No senso comum
Sem apuração
Hoje meu poema engoliu a saliva
Silénciou, passou fome,
frio, invejou nações onde democracia não é comida de leões.
Hoje meu poema cuspiu fogo!
Sentiu o véu do passado,
feito alvo no corpo do cidadão,
80 tiros em Evaldo, Agatas, Marielles, Marias e Joãos.
Hoje meu poema morreu na esquina,
Com a Carol, Mana, Verônica e toda mulher trans, mulher cis assassinada
na censura ao artista, na falta de recurso,
na educação retrógrada,
na tal pós verdade escandalosa,
na boca do ministro que acha que entende de nazismo mais que alemães,
nas convicções de um ex-juiz que agora faz social com a burguesia pedindo aprovação de uma previdência escravagista, no prefeito que faz piada sobre a tragédia da cidade que administra, no ódio que eles declamam aos jornalistas.
Nesses “heróis” de momento,
erguidos por interesses,
sustentados pela falta de discernimento de um povo sem o hábito de leitura.
Hoje meu poema se engasgou