Paralelo 29

EICHBAUM: O alto falante do ceguinho

Sino e relógio da Estação Ferroviária de Santa Maria/Foto: Sidnei Martins Neves, Arquivo Pessoal

JOÃO EICHBAUM

Advogado e escritor

De terno claro e chapéu preto, batendo na calçada com a bengala, sua única acompanhante e guia, o ceguinho saía da Floriano, onde morava, um pouco adiante do armazém dos Albanus.

Passava na frente da casa do senhor Brasil, escrivão do cartório de órfãos e ausentes, e se dirigia para a estação: era o itinerário decorado pelo sentido que lhe substituía a visão.

Rosa, o locutor, tinha uma voz encorpada e potente. Quem a ouvisse não imaginaria seu dono, um rapazinho miúdo, lendo os anúncios atrás das lentes grossas que lhe apequenavam os olhos.

EICHBAUM – Crônica: O apito que pedia socorro (II)

Raras vezes, o ceguinho, dono do serviço de alto-falantes da Viação Férrea, ocupava o microfone, tateando anúncios em braile, ou divulgando, por puro instinto, a saída dos trens.

O alto-falante emprestava melodias para despedidas e chegadas, fosse qual fosse o motivo das lágrimas. A música do adeus sem tempo acompanhava com seu queixume a lenta marcha dos trens que partiam, as rodas rangendo, cadenciadas pelas emendas dos trilhos. A música festiva das chegadas era abafada pelo silvo e pelo tilintar do sino das locomotivas.

JOÃO EICHBAUM : Crônica de uma cidade com duas histórias

Ontem a Avenida era o começo. Começo de sonhos, de amores, de nova vida, ponto de repouso. Ali desembarcavam viajantes trazidos para Santa Maria pelas mais variadas ordens do destino. Chegavam romeiros, bancários, seminaristas, freiras, padres, militares, funcionários públicos, caixeiros viajantes, gente procurando a vida, a realização.

Ali começavam as esperanças de quem buscava outros mundos, os sonhos de quem saía em lua-de-mel, de quem perseguia outros mercados. Era o começo de novos destinos, ou de histórias que o destino mudava. Era o começo da saudade para quem partia, e o começo da tristeza para quem ficava, ao som do alto-falante do ceguinho.

Jornaleiro, jornalista, juiz, escritor…Conheça o novo cronista do Paralelo 29

No som de “Lá no fim da Avenida”, Cézar Lindemeyer e Juarez Fialho deixaram seu testamento para as crianças que viveram a Santa Maria ferroviária.

https://www.youtube.com/watch?v=ysZXsDNFUBc&ab_channel=guilhermegamesbrrsguilhermegamesbrrs

A essa canção estão atreladas lembranças eternas, como a do alto-falante do Ceguinho, que hão de perdurar até que a última delas diga também: adeus. O resto pertencerá à frieza das pesquisas que contarem a história e nada mais, porque não haverá mais vida nas lembranças.

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