O que os games nos revelam sobre nós mesmos (e o que a cobertura da mídia sobre a chacina em uma creche na cidade de Saudades-SC tem a ver com isso)
SILNEI SCHARTEN SOARES
Doutor em Comunicação e especialista em cinema
Jogando, aprendi várias coisas sobre mim mesmo, e confirmei outras que já sabia. Os games reafirmaram para mim mesmo que sou persistente.
Não finalizo uma sessão do jogo até que tenha superado a fase em que estou, por mais difícil que seja.
Não gosto de deixar as coisas pela metade, e o jogo me confirma isso. Teimosia pode ser um nome menos lisonjeiro para essa persistência, claro. Não importa.
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O que interessa é que essa percepção sobre mim mesmo foi reforçada após passar um tempo sentado à frente de uma tela jogando um game.
Jogar também exercita a intuição. Jogos de ação e aventura têm vários momentos de ação desenfreada.
Decisões precisam ser tomadas em frações de segundo, e seguir a intuição pode fazer a diferença entre sobreviver ou perecer. Justamente por serem intuitivas, não atentamos para essas decisões enquanto jogamos.
Só mais tarde, em retrospecto, é que percebemos o quanto fomos guiados por essa espécie de sexto sentido e o quanto isso nos ajudou em momentos em que uma decisão crucial teve que ser tomada em frações de segundo.
Mas não só de adrenalina se faz um bom game. A qualidade gráfica é um atestado de excelência de um jogo.
Texturas detalhadas e realistas e paisagens deslumbrantes são motivo para exercícios de puro prazer visual.
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Myst, um jogo famoso dos anos 1990, se tornou referência de jogo contemplativo, baseado na resolução de quebra cabeças e numa narrativa deliberadamente lenta.
Jogar Myst e suas sequências, Riven e Exile, reforçaram minha predileção pela contemplação de belas paisagens.
A beleza das paisagens também serve de isca para a curiosidade, despertando o desejo de exploração.
Com frequência, me vejo esquadrinhando os cenários para descobrir se ali, atrás daquele paredão, não tem algo que valha a pena conhecer.
Momentos de pausa não alteram em nada o andamento do jogo. Não tem nenhuma função na sequência de ações que fazem avançar o enredo.
Mesmo assim, são valiosos, justamente porque permitem apreciar a beleza das imagens e dos sons.
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De quebra, atendem a nossa curiosidade de explorar os ambientes e conhecer um pouco mais do universo ficcional do game. Jogando, me reconheço curioso e contemplativo. Mas também impaciente e inflexível.
Insistir num caminho que não dá certo por vezes seguidas é uma demonstração de inflexibilidade mental. Teimosia pode ser um nome menos lisonjeiro para essa inflexibilidade, claro.
Perseverar na tentativa de fazer nosso avatar, o personagem que nos substitui vicariamente no jogo, a atravessar um riacho radioativo sem um equipamento de proteção, mesmo após inúmeras investidas fracassadas, é sintoma disso.
Aqui, o mais produtivo seria a adoção de uma atitude contemplativa e exploratória até encontrar a solução.
Mas, por alguma razão, a mente segue na direção contrária ao bom senso, e insiste numa estratégia fadada ao insucesso.
As evidências de que não é por aí, que o melhor é tentar de outra maneira, são fartas. Mesmo assim, insistimos.
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É aí que entra a impaciência. Irritado por não conseguir fazer do meu jeito, apelo para uma saída nada honrosa: o walkthrough.
Trata-se de um tutorial, um passo a passo de como superar os obstáculos do game, explicando como, onde e em que momento se deve agir.
É a salvação e a vergonha de todo gamer. Recorrer ao walkthrough é admitir a própria incompetência e reconhecer a falibilidade que nos é constitutiva. E sintoma de pavio curto.
O uso do walkthrough traz também outro benefício para o desenvolvimento da autoconsciência dos gamers.
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Recorrer ao passo a passo nos fala da necessidade de sermos humildes, de que não podemos fazer tudo o que queremos, que as coisas não são como gostaríamos que fossem.
É um antídoto à hybris, um alerta a tudo que é desmedido, uma vacina contra toda arrogância e excesso de poder.
Jogando, um gamer aprende seus limites. E torna-se apto a compreender que há decisões que não lhe cabem. O arbítrio sobre a vida ou a morte alguém fora do universo ficcional do jogo é uma delas.
Os games me demonstraram também o quanto sou resiliente. Resiliência é definida como nossa capacidade de recuperação após sofrermos um duro golpe. É a disposição de nos reerguermos após uma queda.
Quando estamos jogando, não é raro que nosso avatar fracasse em sua missão. Muitas vezes, por desatenção, por uma resposta lenta ou por termos tomado uma decisão errada, falhamos miseravelmente.
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Quando isso acontece, só nos restam duas alternativas: desistir, deixar pra lá, abandonar o jogo (definitiva ou temporariamente) ou, então, nos levantarmos novamente e seguir tentando. Essa sempre foi minha opção.
Em algumas ocasiões, “morremos” durante a partida. Nesses casos, o personagem que nos representa no universo do game, nosso avatar, tem o dom de “ressuscitar” logo em seguida, retornando ao jogo no ponto imediatamente anterior à “morte”.
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Isso evita a frustração de recomeçar o jogo desde o início. Na vida real não é assim, claro. É somente no universo ficcional dos games que o personagem retorna à vida para prosseguir em sua jornada.
Em nosso mundo, a morte é definitiva. Pessoas mortas não retornam à vida. As pessoas assassinadas por Fabiano não eram avatares de um game.
E, a não ser em caso de transtornos mentais, não confundimos uma coisa com a outra. Quando isso acontece, a causa da confusão está no transtorno, não no game.