Paralelo 29

SABRINA SIQUEIRA: Dois Brasis de Caminha

SABRINA SIQUEIRA

Jornalista e podcaster do Literatura Oral

A literatura brasileira inicia oficialmente com um texto de características de documento ou de relato de viagem.

A carta de Pero Vaz de Caminha que conta ao Rei Dom Manuel sobre o achamento do território brasileiro pelas galés portuguesas, com lirismo e minúcias de descrição, em 1500, ficou perdida por muito tempo.

Foi encontrada em 1839, mas somente por volta de 1900 traduzida para Português moderno.

Como ele mesmo aponta no início da carta, Caminha não foi o único a descrever a terra recém encontrada naquela ocasião e não se dedica aos aspectos técnicos, já que os capitães da frota são quem tinha a incumbência do relato de “marinhagens e singraduras”.

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Sendo assim, ele estava liberado para fazer um relato com ares de literariedade, discorrendo sobre o impacto do novo mundo em homens há meses no mar.

Fato é que entrou para nossos livros de história do ensino fundamental como o escrivão da equipe de Cabral.

A sua primeira observação é sobre o tipo humano que encontram, e que chama atenção pela saúde e disposição, apesar do susto que causaram por estarem pelados.

Em seguida, Caminha cita a riqueza da vegetação e preconiza a abundância de uma terra em que, querendo- a aproveitar, daria ela de tudo, pela quantidade de águas limpas e pelos bons ares, ainda que não fosse possível precisar naquela ocasião se o território possuía ouro e prata.

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Mais de quatrocentos anos depois, um outro Caminha da literatura brasileira “redescobre” o Brasil e se decepciona com o que vê.

Dessa vez, o escrivão é o fictício Isaías Caminha, do romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, lançado por Lima Barreto, em 1909.

Assim como Pero Vaz, a personagem Isaías Caminha chega ao “Brasil verdadeiro” por água, porque na viagem da sua cidade até a então capital brasileira, o último trecho foi numa balsa. 

No clássico de Lima Barreto, um outro Brasil é apresentado/Foto: Reprodução

Mulato e pobre, Isaías vivia em uma cidade pequena do interior de Minas Gerais, numa estufa de amor, onde ouvia da família e professores o quanto era inteligente.

Assim sendo, devia ir para a capital e dar continuidade aos estudos até se tornar doutor.

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Mas já no caminho para o Rio de Janeiro percebe que o tratamento destinado a ele e aos passageiros brancos é diferente.

Chegando à capital, se decepciona com uma cidade suja, sem planejamento e povoada de rostos tristes. E descobre aturdido o Brasil dos preconceitos racial e social, do qual ele era um estrangeiro.

Pero Vaz de Caminha se admirou da aparência sadia dos indígenas, envoltos em flora abundante, prenúncio da fertilidade do solo.

Isaías Caminha tem como cenário de viagem um mato ralo, indicando um solo há muito tempo erroneamente explorado, e se entristece com a visão de criaturas moribundas pela exploração de trabalhos que os mantêm miseráveis, apesar de consumir toda saúde de seus corpos viventes, em uma estrutura urbana deplorável.

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Com essa intertextualidade com a carta de Caminha, Lima Barreto alerta para os prejuízos de séculos de exploração, contrastados entre um Brasil que era farto em possibilidades e um outro aniquilado pelo uso exploratório.

Onde o Caminha de 1500 encontrou águas infindas, a personagem Isaías Caminha se deparou com lama; onde o primeiro se deslumbrou com paisagem exuberante, o outro viu uma cidade suja que o decepcionou com a brutalidade de uma bofetada; onde o português percebeu terra fértil e promissora, Isaías se entediou com mato anêmico numa terra parecendo pele doente.

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O escritor Lima Barreto também manifestou opinião anti-futebol, esporte que ele considerava um estrangeirismo que poderia incitar o ódio.

Escritor Lima Barreto/Foto: Reprodução

Dizia isso quando o futebol ainda não tinha se tornado uma paixão nacional, mas já lamentava que as pessoas enchessem os estádios enquanto os museus ficavam vazios, e temia que os brasileiros ficassem mais alienados das questões sociais, embalados pelo “jogo do pontapé”, como se referiu na crônica “Sobre o football”, de 1918.

Era receio de que o poder alienante da torcida exagerada tornasse o Brasil uma Roma antiga, cujos políticos engambelavam o povo faminto com pão e circo para que não se revoltassem contra a corrupção ou reclamassem seus direitos.

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Barreto provavelmente não estaria surpreso com a decisão dos jogadores da Seleção Brasileira de Futebol em jogar a Copa América depois de terem tido a chance de serem exemplo no incentivo ao distanciamento social, considerando que a realização do certame poderá incentivar aglomerações de torcedores.

Tela “Desembarque de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro em 1500”, de Oscar Pereira da Silva.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Desembarque_de_Pedro_%C3%81lvares_Cabral_em_Porto_Seguro_em_1500#/media/Ficheiro:Oscar_Pereira_da_Silva__Desembarque_de_Pedro_%C3%81lvares_Cabral_em_Porto_Seguro,_1500,_Acervo_do_Museu_Paulista_da_USP.jpg Acesso em 11 de junho de 2021.

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