FABRÍCIO SILVEIRA
Professor universitário e pós-doutorando em Comunicação
Dirigido por Steven Spielberg, O Resgate do Soldado Ryan recebeu onze indicações para o Oscar em 1999, dentre elas as de melhor filme, melhor roteiro e melhor direção, categoria na qual venceu.
Conta, em resumo, a história de um destacamento do exército norte-americano, em plena Segunda Grande Guerra, que recebe a missão de encontrar e trazer, com vida, o paraquedista James Ryan, que havia se perdido, sozinho, em território inimigo.
A operação, liderada pelo capitão John H. Miller (vivido por Tom Hanks), tem uma justificativa dramática: Ryan é o único filho sobrevivente de uma família de quatro irmãos militares.
FABRÍCIO SILVEIRA: Guerra híbrida – pelo controle da máquina do Estado
Na época em que foi lançado o filme se tornou um sucesso de bilheteria. Isso ocorreu, em larga medida, devido ao realismo gráfico com que reproduz as violentas cenas de combate.
O espectador se vê dentro das batalhas, experimentando-lhes a tensão, o terror e a intensidade. Havia muito requinte técnico no modo como as cenas foram filmadas.
Obviamente, o enredo nos proporcionava também “janelas” para respirar, lufadas reconfortantes de lirismo, companheirismo e bom humor.
FABRÍCIO SILVEIRA: Nosso desastre republicano
O Resgate do Soldado Ryan se tornou um marco, recolocando o épico de guerra como gênero cinematográfico rentável, digno de ser explorado comercial e artisticamente.
A própria indústria de videogames se viu estimulada, ainda mais, a partir dali, a desenvolver produtos semelhantes: jogos de tiro, em primeira pessoa, ambientados em ruínas e cenários conflagrados por conflitos bélicos.
Tenho me lembrado muito desse filme nos últimos dias em razão do que temos visto no noticiário político do país.
Fala-se na iminência de um “novo golpe militar”, em novos moldes. O presidente da República se refere às Forças Armadas como sendo “suas” – “as minhas Forças Armadas”, ele diz.
FABRÍCIO SILVEIRA: Falando sozinho
Os militares povoam o aparelho de Estado. Algumas estimativas contabilizam cinco mil militares em postos-chave ou em cargos de confiança. Outras indicam um número ainda maior e mais alarmante.
O ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República – numa ironia mais do que sugestiva, que nos salta aos olhos – é um militar: o general Luiz Eduardo Ramos.
Os militares emergem assim como uma nova “casta”, dando suporte a um presidente sem bases popular e partidária.
Surgem também como os novos operadores do poder, os novos burocratas instalados numa cadeia de comando cujo propósito parece ser o de promover um verdadeiro reboot do Estado brasileiro.
FABRÍCIO SILVEIRA: Você pertence ao 1% mais rico da população?
O que me faz lembrar o filme de Spielberg, acima de tudo, são as revelações recentes da CPI da Pandemia: alguns desses militares estão sendo apanhados em “território inimigo”, digamos assim, estão sendo flagrados em operações duvidosas, muito pouco republicanas, envolvidos em acusações de corrupção, favorecimentos indevidos e pedidos de propina.
O que sintetizou essa rede de suspeitas e intrigas, a respeito da qual tanto se falou na última semana, foi o pronunciamento do senador Omar Aziz (PSD/AM), presidente da Comissão de Inquérito, que mencionou – sem generalizar (sic!) – a existência de uma suposta “banda podre” das Forças Armadas. Tal manifestação foi prontamente rebatida em nota assinada pelo Ministério da Defesa.
As evidências, apesar de tudo, vão se somando. Aos poucos, ganham mais e mais robustez. Tornam-se irrefutáveis.
Diante disso – diante da confirmação de que um governo de militares não é imune à corrupção e de que não é, por si só, sinônimo de eficiência administrativa no serviço público –, como irá se comportar o alto comando da Corporação?
FABRÍCIO SILVEIRA: Bolsonaro genocida?
Tentará resgatar o “soldado Ryan”, custe o que custar, assumindo o risco de se perder e morrer com ele?
A tropa irá abandonar à sorte alguns de seus membros – para que sejam punidos em respeito às leis que regem a vida dos civis – ou se manterá compactada (“íntegra”, nesse contexto, é uma palavra que soa ruidosa), arcando com os abalos políticos de sua reputação?
Suspeito que – de acordo com a mentalidade militar, tal como o filme a representa, pelo menos; e de acordo com a suposição de que política é guerra, como parece acreditar o atual governo – a opção será trágica e heróica, de uma só vez, de um heroísmo invertido e desglamourizado: a escolha se dará pela repactuação com o soldado desgarrado, garantindo-lhe proteção e cobertura incondicionais, até o fim, tenha isso o significado e o desfecho que tiver.
FABRÍCIO SILVEIRA: Carta aos historiadores de 2121
O noticiário político no Brasil de 2021 é mesmo surpreendente: nos coloca diante de uma versão negativa de um filme de Steven Spielberg. É uma versão disfórica, sem transcendência, sem redenção ou enobrecimento. Sem pátria e sem patriotismo.
Não há ufanismo que lhe sobreviva. É uma ficção de terror pós-político. A reencenação amoral do Resgate do Soldado Ryan.