EDINARA LEÃO
Escritora e doutora em Literatura
Se Freud o tivesse conhecido, bem poderia chamá-lo o “Mito de Nair”.
Nair era jovem, inexperiente, nada sabia da vida. As coxilhas habitavam o mato virgem que era sua alma. E o horizonte pétreo era seu infinito.
Nair, novinha, aos dezesseis anos, era uma desaventada. “cabeça nas nuvens”, diziam. Não daria boa coisa.
Imaginavam os demais, ali por aquelas paragens. A moça, que habitava um galpão mal coberto, encafifava de pensares.
Pensar muito deixa louco, amedrontavam-se. Numa manhã de domingo, Nair foi tomada de uma decisão:
– Vou para a cidade, quero conhecer o mundo.
O velho Maneco, pai da moça, baixou os olhos. Só a mãe poderia dissuadi-la de tão estapafúrdia ideia. As mulheres sabem-se.
Mas a mãe falecera há três anos. E ele não teria força contra a resolução da filha, colhida de muito horizontear. Ele, o pai, o velho Maneco, o que sabia? Cuidar o pasto das quatro vaquinhas – e elas andavam magrelas.
Baixou a cabeça. O medo de a filha perder-se no descampado, vastidão desmatada por detrás da coxilha.
O medo passa a engolfar a alma do velho. Ela iria de qualquer jeito, contra ou favor dos ventos – ele sabia.
Nair gostava mais do rio que da terra. Emaranhava-se nas dobras do rio. Sereiava. A cantoria nublava a alma do pai.
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Era uma Diana das águas, seria uma nereida do desaguadouro, soubesse o que era uma nereida. Mas dessas coisas não entendia.
Sabia apenas que o rio conduz, leva e traz coisas e pessoas. Nas manhãs de domingo, a criação no pasto, sobrava tempo.
O cheiro da grama, o gosto da aurora, o leite da Hybris, quase a conta-gotas – tempo de magreza. Véspera de fartura. Matinava nas dobras do rio, onde iria dar depois da terceira dobra?
Dois poemas e uma crônica na voz de Edinara Leão
Esquecia a paisagem, a margem… e clamava o sempre do rio. Havia o sem paradeiro, era isso que havia para além do braço do rio. O rio serpenteava. Nair, pura, não profanada, desejava.
A ideia matutava na cabeça. Não sabia como. Não havia professores por aquelas bandas. Escola tão longe que não dava para ir.
Aprendera o ABC nas férias, com a menina da fazenda. Sabia escrever o nome: Nair da Silva Ferreira. E isto fora seu primeiro orgulho, lembrava no intervalo entre duas ideias que embretavam sua mente.
A ideia habitava-a, quase famigerada. Incessante. Noite e dia. Desarvorada e sem trégua. Mas à noite a ideia ficava possuída de formas tão claras que a sufocava. Ela deveras andava meio desnorteava de tanto idear.
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Já não vivia a vida verdadeira, a vida soava-lhe tão pequena investida que estava na vastidão da ideia. Tão clara. Tão nítida.
Um dia veio o caminhão de lenha. Aprochegava-se o frio do inverno. O inverno é um tempo de ausências, pensou num repente, coração na boca.
Nair conhecia a geada do sereno, não a da alma. Para ela tudo era possibilidade, mesmo as pedras conversavam.
Quem sabe o rio a levaria para longes terras. Teria que ter pelo menos um caíque. Ela não tinha. E caíam-lhe os braços.
Mas naquela manhã meio cinza, desapessoada, de perditude, enquanto entranhava narinas adentro o cheiro da lenha recém-cortada pelo pai, algo tão veloz como fogo que queima sem mansidão passou qual raio em sua alma desprevenida.
– É a minha chance, pensou. A ideia sem sombra, cristalina como a água.
Edinara Leão traz militância cultural para o Paralelo 29
Levara a lenha para casa entrando pela porta dos fundos. Coração disparatado. E enquanto o pai recebia do homem da lenha, juntou dois trapos, os sem rasgos, que muito mais não tinha.
Amontoou numa sacola cheia de picumã, até então sem serventia. Quando o homem embarcou, Nair pula:
– Vou com o senhor!
O coração do pai salta e para. Ele não sabe o que fazer. Ela vai. Não posso impedir. E o sorriso de quem recebia um dinheiro parco fica ali, cortado ao meio. Num gesto súbito, que aquele momento era tão veloz, alcança o dinheiro à filha. Era o máximo que podia fazer.
Estende a mão. Salta uma lágrima desavisada das coisas do mundo. Está consumado, pensam em uníssono.
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Pai e filha no instante miserável da despedida. Do coração, a visão de uma frase: Ela vai. Ela vai. A repetir-se como um lenho na correnteza. Ela vai!
Nair beija a lágrima do pai, pega o dinheiro. O tempo morre. Sobe rápido, que o caminhão já roncara. Nem o pai a entristece. Ela vai.
Sabe o que quer do desmundo além da distância. E segue. Leva a dobra do rio dentro de peito. O motorista dá a partida.