Ricardo Westin – Agência Senado
Na pintura Independência ou Morte, de Pedro Américo, o príncipe D. Pedro aparece altivo no centro da imagem, escoltado por auxiliares e soldados. Ele é o protagonista. No canto inferior esquerdo da tela, surge um camponês desavisado puxando um carro de boi em direção ao Riacho do Ipiranga. Ele olha para a cena sem saber o que acontece. É um mero figurante.
O quadro, pintado 66 anos depois do 7 de setembro de 1822, sintetiza bem a forma como as elites dirigentes e o povo ainda hoje costumam ser apresentados nas aulas e nos livros escolares. Enquanto os “grandes vultos” conduzem sozinhos a nação, às classes subalternizadas resta assistir passivamente à história que vai sendo construída.
Dessa forma, a história do Brasil se resumiria a uma sequência de feitos levados a cabo por personagens do quilate de D. João, D. Pedro, Deodoro, Getúlio e JK. Historiadores, no entanto, afirmam que a realidade não é bem essa.
— É claro que essas personalidades são importantes. Não há como contar a história sem citá-las. Mas, ao contrário daquilo que por muito tempo se ensinou, elas não estão sozinhas. O povo também é um ator histórico e, como tal, interferiu e interfere ativamente nos rumos do país — explica o historiador Antonio Barbosa, professor da Universidade de Brasília (UnB) e consultor legislativo do Senado.
Os indígenas, por exemplo, costumam surgir na história apenas no momento do Descobrimento e nos primeiros momentos da Colônia. Depois disso, somem sem maiores explicações. Na vezes em que aparecem, não ganham destaque. É como se não tivessem personalidade e fossem meras marionetes dos jesuítas ou escravizados dos colonos.
No século 17, o cronista Maurício de Heriarte os caracterizou como “inimigos do trabalho” e gente de “pouca vergonha e muita malícia e maldade”. No século 19, o diplomata Francisco Adolfo de Varnhagen — considerado um dos fundadores da historiografia brasileira — escreveu que eram “bárbaros” e deveriam ser civilizados “à força”.
Analisada com rigor, a história mostra outra realidade. Em 1641, no Rio Grande do Sul, os bandeirantes sofreram a sua mais humilhante derrota. Um grupo de guaranis venceu uma grande expedição escravizadora de indígenas no Rio M’Bororé, no que hoje é a fronteira com a Argentina. Os poucos bandeirantes sobreviventes chegaram a São Paulo maltrapilhos e famélicos.
Na década seguinte, os holandeses foram expulsos de Pernambuco e adjacências. Nesse processo, importantes foram as atuações do batalhão indígena comandado pelo líder Poti, renomeado Antônio Filipe Camarão, e do batalhão de escravizados conduzido pelo negro Henrique Dias. Eles, ao contrário de outros chefes militares, não foram condecorados após a reconquista portuguesa do Nordeste.
Após o período colonial, os indígenas foram protagonistas da Cabanagem, a maior revolta social da história brasileira. Essa insurreição explodiu em 1835 em Belém e logo se espalhou por toda a Amazônia. Inicialmente usados pelas elites locais como massa de manobra, eles tomaram as rédeas da revolta, cansados de ser explorados, e chegaram a tomar o poder. Ao cabo de cinco anos, a Cabanagem foi massacrada pelo governo imperial. O saldo de mortos é estimado em até 40 mil (em torno de 25% da população da Amazônia).
O historiador Victor Leonardi, professor aposentado da UnB e autor do livro Os Historiadores e os Rios — natureza e ruína na Amazônia brasileira (Editora UnB), afirma:
— A história é contada através da lente da elite brasileira, e ela exclui os grupos populares, embora eles tenham estado presentes o tempo todo. No máximo, a elite aceita esses grupos como mão de obra, mas nunca como agentes do seu próprio destino. A verdade é que eles, sim, participam da história, em especial reagindo à opressão. Às vezes vencem, às vezes têm vitórias parciais e às vezes perdem, mas nunca deixam de resistir, das formais mais sutis às mais violentas.
O retrato histórico que se pinta dos negros é semelhante ao dos indígenas. Eles aparecem nos capítulos da Colônia e do Império e deixam de existir após a assinatura da Lei Áurea, em 1888.
Na vigência da escravidão, não foram personagens resignados. Lutaram das mais diversas formas, das fugas às rebeliões. O território brasileiro teve centenas de quilombos, dos quais o mais vasto e célebre foi Palmares, no atual estado de Alagoas, que resistiu por mais de 100 anos e teve Zumbi entre seus líderes.
A elite brasileira sabia que os escravizados poderiam virar o jogo. Um de seus grandes temores era que aqui acontecesse algo semelhante à Revolução Haitiana, iniciada em 1791, na qual os negros tomaram o poder, aboliram a escravidão e expulsaram os brancos.
Os negros, tanto escravizados quanto livres, tiveram uma participação destacada na própria Independência do Brasil, ao contrário do que mostra aquela pintura clássica de Pedro Américo. Em Salvador, eles pegaram em armas para enfrentar os soldados portugueses que se recusavam a aceitar a separação entre Brasil e Portugal. Destaca-se a atuação de mulheres como Maria Felipa. A guerra só acabou em 1823, com a expulsão dos militares lusitanos.
Em 1852, pobres do interior de Pernambuco e províncias vizinhas conseguiram impedir a realização daquele que teria sido o primeiro recenseamento populacional do Brasil. Quando souberam que o Império contaria a população, reagiram com pancadaria. A insurgência ficou conhecida como Guerra dos Marimbondos. Os libertos temiam que o Censo fosse usado para reescravizá-los. Eles conseguiram prevalecer. O Censo foi então cancelado, sendo realizado somente 20 anos depois.
Foi a escravidão que levou à formação do primeiro movimento popular do Brasil: o abolicionismo. Ele ganhou força nas cidades ao longo dos anos 1870 no grupo que hoje seria a classe média, com jornais, livros, comícios e eventos com arrecadação de fundos para a compra de alforrias.
Se dependesse dos senhores, as normas abolicionistas teriam se limitado à Lei do Ventre Livre (1871) e à Lei dos Sexagenários (1885). Isso significa que, para o benefício deles, a escravidão se retrairia a passos de tartaruga, entraria no século 20 e se extinguiria “naturalmente” apenas no início dos anos 1930.
Isso não ocorreu porque, às vésperas de 1888, percebendo que a escravidão permaneceria se não houvesse maior pressão, os abolicionistas começaram a apoiar os escravizados em fugas e rebeliões. Os senhores reagiram com seus jagunços armados. Temendo que o país mergulhasse numa guerra civil, o governo imperial finalmente baixou a Lei Áurea. Em outras palavras, os próprios escravizados foram agentes da abolição.
Na República, o povo voltaria a assumir papel de destaque na história. Na década de 1890, camponeses empobrecidos começaram a se mudar para o arraial baiano de Canudos, atraídos pela figura mística de Antônio Conselheiro e pela vida livre da exploração dos grandes fazendeiros.
Inventou-se que seriam defensores da restauração do Império. O governo republicano partiu com tudo para cima deles. Organizada, a população de Canudos derrotou o Exército brasileiro em três ocasiões. A República só conseguiu aniquilar o arraial e os sertanejos na quarta expedição, em 1897.
— É muito provável que a elite brasileira tivesse relegado Canudos ao esquecimento. Isso só não aconteceu porque os movimentos do Exército foram acompanhados in loco pelo escritor Euclides da Cunha, que denunciou o massacre no clássico Os Sertões — opina o historiador Victor Leonardi.
O povo também apareceria na Revolta da Chibata, no Rio de Janeiro, em 1910, e na Guerra do Contestado, iniciada em 1912, na divisa entre Paraná e Santa Catarina.
Na primeira, marujos negros se insurgiram contra as chicotadas com que eram castigados, como se fossem escravizados. Eles tomaram os maiores navios de guerra da Marinha e ameaçaram bombardear o Rio de Janeiro. Foi uma revolta integralmente de pobres, ao contrário das rebeliões ocorridas duas décadas antes na mesma Marinha, as Revoltas da Armada, conduzidas por almirantes. Os revoltosos conseguiram o fim dos castigos físicos, mas a maioria deles foi sumariamente executada.
A Guerra do Contestado, por sua vez, foi uma revolta de camponeses pobres que haviam sido expulsos da terra em que viviam pela construção de uma ferrovia. Estima-se que 10 mil deles tenham morrido nos quatro anos do conflito.
Em 1917, explodiu em São Paulo a primeira greve geral de operários do Brasil. A cidade parou. Não existiam férias, aposentadoria, adicional noturno nem descanso no fim de semana. Os patrões não respondiam pelos acidentes nas fábricas. Os salários eram miseráveis. Mulheres e crianças desempenhavam as mesmas tarefas dos homens, mas recebiam ainda menos. A greve foi reprimida à bala.
Foi só a partir de greves como essa que os brasileiros arrancaram do poder público os primeiros direitos trabalhistas. É errôneo atribui-los a uma suposta benevolência do presidente Getúlio Vargas. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943, apesar de ter trazido inovações, foi basicamente uma compilação dos direitos surgidos nas décadas de 1920 e 1930 em resposta à mobilização operária.
O historiador Victor Leonardi explica:
— Para que as elites continuem desfrutando de seus privilégios políticos e econômicos, o status quo precisa ser mantido. É por isso que a versão hegemônica da história busca ocultar o protagonismo popular. O povo de forma geral fica sem a consciência de que é forte, já fez mudanças importantes na história e pode fazer muitas outras. O conhecimento histórico é essencial para o exercício da cidadania. Um povo ignorante é dominado com facilidade.
Em diversas ocasiões no século 20, o povo atrairia os holofotes para si na defesa da democracia. Em 1934, antifascistas enfrentaram violentamente um grupo integralista na Praça da Sé, em São Paulo. Eles agiram para impedir a realização de um comício da Ação Integralista Brasileira, que fora fundada por Plínio Salgado sob a inspiração do fascismo italiano e estava no auge. Sete pessoas morreram na Sé.
Em 1954, diante da iminência de um golpe de Estado, o presidente Getúlio Vargas se suicidou. A população de várias capitais saiu às ruas atacando políticos e jornais adversários do getulismo. O golpistas civis e militares ficaram acuados diante da reação popular, a conspiração foi abortada e a democracia se salvou.
Algo semelhante ocorreu em 1961, depois que o presidente Jânio Quadros renunciou e os militares vetaram a posse do vice João Goulart. No Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola encabeçou a Campanha da Legalidade, para, em respeito à Constituição, exigir Goulart na Presidência. O povo e os militares gaúchos apoiaram o governador. Chegaram-se a montar barricadas em Porto Alegre para a guerra civil que se aproximava. A posição irredutível do Rio Grande do Sul foi fundamental para a posse do vice-presidente.
Na ditadura militar, o povo saiu às ruas exigindo o fim das perseguições políticas em 1968, a concessão da anistia em 1978 e 1979 e a aprovação das eleições diretas em 1983 e 1984. Já na democracia, em 1987 e 1988, pessoas comuns do Brasil inteiro enviaram cartas à Assembleia Nacional Constituinte propondo a inclusão de direitos na Constituição que estava sendo preparada. Tamanha mobilização nunca ocorrera antes.
A historiadora Mary del Priore, autora da coleção de livros Histórias da Gente Brasileira (Editora LeYa), diz que pouco a pouco a forma como se narra a história nacional vem sendo mudada. De acordo com ela, é necessário ser crítico e buscar identificar quem produz a história que é contada:
— No fim do século 19 e no início do século 20, quem escrevia a história eram homens da elite e majoritariamente brancos. Para eles, o importante eram a grande pátria, os heróis, os políticos ilustrados, a bandeira, o hino. Foi uma forma de encarar a história que permaneceu por muito tempo e, de uma forma ou de outra, chegou até os nossos dias. Não se tratou de uma exclusividade brasileira. Aconteceu em diversas partes do mundo. Na Itália e na Alemanha, esse tipo idealizado e ufanista de história ajudou a embasar o fascismo e o nazismo.
Ela conta que, no Brasil, essa história começou a mudar nos anos 1970 e 1980:
— O movimento se iniciou nas universidades, quando as pesquisas históricas passaram a olhar as pessoas de baixo, as massas silenciadas, os anônimos, e se acentuou nas décadas seguintes, quando mais negros e indígenas entraram em massa no ensino superior e conseguiram construir e contar as suas memórias. A Lei de Cotas, nesse sentido, foi importantíssima. Além disso, começaram a ser abertas universidades pelo interior do país, nos lugares mais remotos, e a história deixou de ser apenas aquela centrada em São Paulo, que começava com os bandeirantes e terminava com Getúlio Vargas. Essas mudanças deixaram a história muito mais rica.
O mesmo movimento deu voz histórica às mulheres e a outros grupos que por muito tempo foram ignorados. A história atualizada, porém, não chega imediatamente à sociedade porque sempre leva algum tempo até que o conhecimento produzido na universidade passe a integrar o currículo dos colégios.
O senador Paulo Paim (PT-RS) lembra que uma mudança importante foi imposta pela Lei 11.645, que em 2008 tornou obrigatório o ensino das histórias afro-brasileira e indígena nas escolas públicas e privadas do Brasil. Ele acrescenta:
— A história sempre foi contada pela metade, e isso tem relação com o racismo que estrutura a sociedade brasileira. Tenta-se branquear o país e esconder, com vergonha, aquilo que realmente somos, toda a nossa diversidade. É como se o Brasil tivesse sido forjado apenas por um pequeno grupo de generais cobertos de medalhas, e não por uma multidão de pobres, negros e indígenas cobertos das cicatrizes das batalhas.
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Reportagem: Ricardo Westin
Edição: Valter Gonçalves Jr.
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Arte da capa: Aguinaldo Abreu
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(Com reportagem da Agência Senado)