Paralelo 29

Clarice. Eu. E és tu.

Bruna Osório Pizarro/Foto: Amanda Pizarro

BRUNA OSÓRIO PIZARRO – Psicóloga e psicanalista

Pedi licença para escrever, a mim mesma, em uma manobra equilibrista que eu pudesse me autorizar sendo. Não aguardar terminar mais um curso, mais um livro, mais uma supervisão, mais uma análise pessoal, para ir. SER algo, ou alguma coisa, enquanto se É.

Clarice Lispector, escreve belamente sobre isso. Ou eu a leio assim. Para mim, é uma mulher que se deixava SER na escrita. Ela brinca com a entrega e a presença, com a palavra e a entrelinha. Por aqui, ela está sempre no presente, conversando comigo. Escreve, em Água Viva:

“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca:

a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra –

a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu.”.

Foi com Clarice que eu fui me permitindo ler em outro tempo, deixando a palavra, ou a não palavra, a entrelinha, incorporar-me. Perceber os efeitos das palavras lidas em mim, vai além de fazer uma análise crítica de um texto. É dispor de tempo, e sentir os efeitos de quando se lê com o corpo inteiro.

Eu adoro quando a leitura toma uma proporção de atravessamento. Quando o corpo entra em jogo. Quando se É pelo corpo. No corpo. Atravessa-me, não como algo que passa, pois não é um atravessar sem efeito. Poderia não ter efeito algum?

Ainda em “Água Viva”, Clarice escreve:

“Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio.

Escrevo por acrobáticas e aéreas piruetas – escrevo por profundamente querer falar.

Embora escrever só esteja me dando a grande medida do silêncio.

E se eu digo “eu” é porque não ouso dizer “tu”, ou “nós” ou “uma pessoa”.

Sou obrigada à humildade de me personalizar me apequenando mas sou o és-tu.”

É no lugar do “eu”, o lugar que achei mais confortável para acoplar o que vivo, o que sinto, o que escuto, o que vejo, o que leio. Nem tudo meu. Mas com meu corpo na cena. E o desejo de estar inteira.

É no lugar do “entre”, o “és-tu”, que eu sinto que estamos compondo juntos. Afinal, é no entre que produzimos.

É na palavra como isca, que dou voz para os silêncios que me chegam.

É no corpo que sente a palavra lançada, que destino para a escrita coisas que não podem ser ditas. Parece que utilizo da urgência de fazer a palavra circular. Não para retornar ao mesmo lugar, mas para ser atravessada em algum corpo que faça efeito.

“Deixar acontecer”, sendo “és-tu”, por meio da escrita. Distraidamente.

Assim também É para a pessoa que busca escuta. Para a mulher que se permite falar, pela primeira vez, das violências existentes apenas no SE TORNAR, enquanto se É. Mulher. Que de distraída, se entrega às palavras e as diz. Ou as escreve. Presente de si e de sua dor. Deixando ser capturada ou não, a entrelinha.

De um lado uma distração necessária para ‘deixar ser’, no instante. No É. Que diz da espontaneidade, algo importante para nossos afetos e relações que prezam pela vida. Algo que a gente tende a admirar em algumas crianças e adolescentes, ou nem tanto.

De outro lado, uma distração que quer seguir distraída. Uma distração unida a uma certa preguiça de avançar. Aquela que vê e não vê. Seria demais enxergar todes os corpos. Muita responsabilidade. Que não é minha, a distração diz. Seguir no (com)passo conhecido é seguro. Permanece. Privilégio.

Sabe que me retoma ao o quê nos ensinaram sobre o voto: secreto e individual. Enxergo a cena da confissão que passa nas novelas e filmes. Secreto e individual. Ou nem tanto. Agora tem-se falado que o voto não é secreto. Eu aposto em falarmos – também – que ele não é individual. Enxergamos o “és-tu”?

Parece que inventar verdades têm nos sustentado e, talvez, só estejamos com dificuldade de inventar uma outra verdade. Um outro “és-tu”. Ser no instante do É. Um corpo com efeito.

Espero que estejamos presentes na urgência do nosso tempo. Mesmo sabendo que eu não deveria esperar. E só SER algo, ou alguma coisa, enquanto se É. Sendo.

“Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.”. “É tão difícil falar e dizer coisas que não podem ser ditas.” Por que “O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa”, diz Clarice.

Compartilhe esta postagem

Facebook
WhatsApp
Telegram
Twitter
LinkedIn