Paralelo 29

Lugares

Foto: Coletivo de Psicanálise de Santa Maria - Eixo Kiss Divulgação

MANOELA FONSECA LUDTKE TAGLIARI – PSICÓLOGA E PSICANALISTA


“Onde você estava no dia 27 de janeiro de 2013?”. Essa é a pergunta lançada pelo Eixo Kiss, do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria, em sua primeira intervenção, em setembro de 2022.

Ao ler essa interrogação me senti atravessada. Foi como um “Ei, você aí, vamos falar disso?”. Imediatamente um amontoado de imagens me visitou e respondi de pronto “não, eu não quero responder.” Porém, aquilo que não elaboramos e tentamos recalcar retorna e não cessará de se
inscrever até que possamos fazer algo com isso.

O trauma dá seu jeito de passear por nós, dar um olá e nos revirar de novo e de novo. Sendo assim, essa pergunta ecoou em mim e me colocou a escrever esse texto.

Escrever estas linhas é uma tentativa muito singular e íntima de elaborar o que vivi e senti, elaborar sobre o meu lugar frente ao incêndio da Boate Kiss. A pergunta remete ao lugar.

Poderíamos responder “estava em casa com meu namorado” entendendo lugar pelo viés geográfico, mas também (e foi essa que me atravessou) podemos ler essa pergunta a partir do lugar subjetivo que nos encontramos frente a essa tragédia. Como isso me afetou ou me afeta?

Eu soube do incêndio através da ligação de uma amiga. Nosso colega estava trabalhando na Kiss naquela noite. Será que está vivo Ligamos para meu cunhado, pois ele gostava de frequentar a boate.

De imediato percebemos que aquela brincadeira boba que se faz quando ligamos para alguém que há muito não falamos “e ai, fulano, está vivo?”, se tornou algo duramente real.

O real, este que escapa à linguagem e do qual apenas é possível produzir contornos, caiu como um bloco de concreto sobre nossa cidade. Os corpos estão sendo levados para um complexo de ginásios.

Caminhões para levar corpos, sirenes por todos os lados. Poderia ser um filme, mas era vida real. As famílias precisavam reconhecer seus filhos.

As redes sociais e até mesmo a rádio anunciam que precisam de profissionais de saúde, entre eles os psicólogos para dar suporte às famílias nesse momento. Eu fui. Chegando lá centenas de pessoas desesperadas tentavam saber sobre seus filhos. Eles entravam aos poucos, sentavam na arquibancada.

Um policial com microfone e uma lista de nomes. Ao passo que os nomes eram lidos, alguém levantava a mão e era encaminhado para outro ginásio onde poderia ver o corpo de seu filho, seu irmão, seu namorado, sua esposa, seu colega de trabalho, seu colega de apartamento.

Manifestações de solidariedade em frente ao prédio da boate Kiss, em Santa Maria/Foto: Fernando Frazão, Agência Brasil

Poderia ser uma listagem do vestibular, como escutávamos na rádio a lista do aprovados da Universidade, mas era uma lista de jovens mortos. Frente a esse horror eu me senti pequena.

Eu era jovem, eu havia concluído a graduação de Psicologia há um ano. Só um ano. Eu só pensava que meu nome poderia estar naquela lista. Eu só pensava que não queria acompanhar pais no reconhecimento do corpo do seu filho, ainda que essa fosse a função dos psicólogos e eu era uma psicóloga que estava ali para trabalhar.

Eu me angustiei e fui ajudar na rua. Eu vi uma mãe sentada na calçada, em prantos, ela berrava uma dor, que agora que sou mãe, me engasga só de imaginar. Algumas pessoas na volta tentavam oferecer uma medicação para ela se acalmar.

Ela gritava pra todos ouvirem “eu não quero remédio, eu quero meu filho”. Frente a essa dor eu me senti incapaz. Depois ajudei uma família que me explicou não ser da cidade.

Eles me afirmaram com muita convicção que seu filho estava em algum hospital, mas não sabiam os nomes dos hospitais e precisavam dos telefones pra ligar. Eu consegui uma lista de telefones pra eles.

Eu acreditei que o filho deles estava em algum hospital. Mais tarde, já em casa, assisti ao jornal local e aqueles mesmos pais que eu ajudei apareceram na TV, diziam como era terrível ter perdido um filho.

Frente a essa ilusão eu me senti fraca. Juntei todos os meus sentimentos, os guardei em algum lugar dentro de mim e me dediquei ao trabalho por longos 3 anos.

Coordenei processos de trabalho, fizemos visitas à unidades de saúde, demos apoio para equipes trabalharem com o trauma, atendi familiares, mães, pais, filhos.

Pais, familiares e sobreviventes recolocando o banner com as fotos das vítimas na Tenda da Vigília, após o júri de 2021/Foto: José Mauro Batista, Arquivo Paralelo 29

Estudei sobre o trauma, sobre urgência, crise, clínica ampliada. Escrevemos um livro, participei de reportagens. Um dia precisei me afastar. Depois de 7 anos apenas observando de longe decidi voltar.

Contudo, a partir de um outro lugar. Hoje eu consigo entender que também faço parte desse trauma. Esse trauma é coletivo, ele é de Santa Maria, ele não é apenas de quem sobreviveu ou de quem perdeu alguém. Estamos todos no mesmo lado.

Não existem os “afetados direta e indiretamente” pelo incêndio na Boate Kiss. Existem os afetados, os marcados. Eu sou marcada por essa tragédia. Minha escuta clinica é marcada por essa tragédia.

Eu nunca mais entrei em uma boate. Eu sempre procuro a saída logo quando entro nos lugares. Invariavelmente eu penso no que faria se determinado lugar pegasse fogo e eu estivesse lá.

Eu chorei aliviada quando os réus foram condenados. Eu fiquei revoltada quando tudo se reverteu. A tragédia da Kiss dói, ela atravessa, desacomoda e bagunça. Mas também, ela reúne pessoas, promove encontros, reposiciona lugares.

Aos psicólogos e psicanalistas essa tragédia coloca em xeque a ilusória neutralidade do terapeuta/analista. Escutando essa dor aprendi sobre presença, sobre estar junto, sobre acompanhar.

Sustentar neutralidade é sustentar que se está fora da cena. Nós não estamos fora da cena. Frente a esses 10 anos, eu escrevo. Eu tento elaborar e sutilmente contornar minha pequenez, minha incapacidade e minhas fraquezas. O caminho é longo e árduo.

Mas quem caminha de braços dados sempre chega mais longe. Que a gente possa caminhar junto, sem “eles e nós”, apenas “nós”.

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