Paralelo 29

Onde eu estava em 27 de janeiro de 2013?

Foto: Arquivo Pessoal /Bharbara Alves Agnoletto

BHARBARA ALVES AGNOLETTO – PSICÓLOGA E PSICANALISTA EM FORMAÇÃO


São quase 10 anos desde essa data e a resposta a essa pergunta é muito mais complexa do que pode parecer aos ouvidos desinteressados daqueles que acreditam que as dores não devem ser lembradas.

No dia 27 eu estava nas sirenes que despertaram a cidade inteira, e que se misturaram com as batidas nos nossos corações transformadas em cadência de pressa e aperto de negação.

Eu estava nos gritos de desespero, na ardência dos olhos, na respiração que falhava, na fumaça negra e assustadora, naquele cheiro venenoso, ácido, fétido, que fez nossos estômagos virarem uma bola de angústia. Eu estava em cada hospital, em cada lista de nome de pessoas internadas, em cada olhar de horror dos profissionais envolvidos no socorro.

Eu estava nas inúmeras ligações perguntando por conhecidos e estava na ligação que me trouxe a notícia da morte de Luciano. Ele, que salvou pessoas de dentro do horror, não conseguiu sair e ainda era preciso reconhecê-lo. Como se reconhece alguém vestido de morte?

Intervenção no prédio da boate Kiss/ Foto: Bharbara Alves Agnoletto/Arquivo Pessoal

Eu estava na dor mais profunda que pude sentir. Um passo a mais em direção àquela dor e seria o enlouquecimento. Mas ouvindo a contagem do número de mortos já não teria eu enlouquecido?

Eu estava no chão do meu quarto, sem saber quem era, sem saber de mim, apenas angústia, desespero e dor. Eu estava no Farrezão, sozinha e acompanhada por tantos.

Estava em cada olhar de dor, na tensão que se fazia presente cada vez que era lida a lista de nomes de corpos a serem reconhecidos. Estava ali onde acabava a esperança.

Estava com frio em um dia quente. As 16h eu estava em um nome, Luciano Tagliapietra Esperidião. Estava no seu corpo inchado e sujo de fuligem. Estava no cheiro impregnado na carteira e no celular, o cheiro da tragédia. Eu estava na dura realidade, na frieza da morte, no abismo da dor, no caminho do
horror, no lugar onde nunca ninguém deveria haver estado.

Hoje, eu estou na saudade que dói, e como dói! Em cada um dos 242 seres que se fazem presentes em sua ausência, em cada vida interrompida, em casa sonho não vivido.

Eu ainda estou na Kiss, porque quando uma parte de nós morre enquanto outra sobrevive é assim que passamos a viver.

E eles ainda estão em mim, Luciano, Gabriella Saenger, Janaína Portella, Cristiane da Rosa, Natasha Urquiza, Jennifer Ferreira, Luana Behr Viana e todas as demais histórias que eu conheci depois.

Estou no passado, no presente e no futuro. E no desejo de justiça, por eles, por nós, por mim. Por ter estado aqui em 27 de janeiro de 2013.

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