Paralelo 29

Depois de familiares, Ministério Público critica série da Netflix sobre tragédia da Kiss

Foto: Divulgação Netflix

Instituição argumenta que ficção produzida com base em livro desinforma a população sobre o incêndio que matou 242 pessoas em Santa Maria

Após um grupo de pais e familiares de vítimas criticar a série da Netflix sobre a tragédia da Kiss, que estreou na semana passada, agora é o Ministério Público do Rio Grande do Sul que se volta contra a ficção produzida a partir do livro “Todo o dia a mesma noite: a tragédia não contada da boate Kiss”, escrito pela jornalista e escritora mineira Daniela Arbex.

O MPRS publicou nota de esclarecimento em suas redes sociais e em seu site criticando a Netflix por distorcer fatos de um caso que ainda não teve seu julgamento concluído.

“O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, considerando o interesse público e a realidade dos fatos envolvendo um caso ainda sob judice, emite nota de esclarecimento sobre a série intitulada “Todo o dia a mesma noite”, produzida e veiculada pela empresa Netflix”, diz o MPRS.

Frases na fachada da boate Kiss questionam a Justiça/Foto: Tomaz Silva, Agência Brasil

Caricatura do sistema de Justiça

Em outro trecho, a instituição reclama que a série da Netflix passa uma caricatura do sistema de Justiça e de seus ritos e regras processuais.

“Ao apresentar tanto personagens quanto o Sistema de Justiça, seus ritos e regramentos de forma caricaturada em muitos momentos, a obra contribui para a desinformação e para a criação de uma memória coletiva contaminada por versões e por fatos que não ocorreram como apresentados”, afirma a nota da instituição que é a autora dos processos criminais da Kiss.

Embora a nota não diga se o MPRS pretende mover alguma ação judicial contra a Netflix, a manifestação institucional é bastante forte e reforça a indignação de pais contrários à série.

Artistas e produtores da série visitaram pais e sobreviventes em Santa Maria Foto: Divulgação/AVTSM

Série critica impunidade

Na ficção, que começa com imagens fortes do incêndio na boate e com os corpos dos jovens mortos no Centro Desportivo Municipal (CDM), em 27 de janeiro de 2013, a Netflix diz que o caso não teve justiça.

Na época, os promotores foram muito criticados por não incluírem agentes públicos no processo principal da tragédia, que acabou se resumindo a quatro pessoas: os donos da boate e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira.

Alguns desses agentes públicos, como o então prefeito Cezar Schirmer (PMDB) nem chegaram a ser processadas. Em 18 de julho de 2013, a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul acolheu o pedido do MP e arquivou o expediente contra Schirmer.

Em 8 de novembro de 2016, o Conselho Superior do MP homologou o arquivamento do inquérito que apurou a atuação dos agentes e servidores municipais, entre eles Schirmer.

Ainda na nota, o MPRS diz que processou 47 pessoas foram alvo de ações do órgão na Justiça Comum e na Justiça Militar. Por fim, afirma que “vem travando uma longa e árdua batalha para garantir que os quatro responsáveis diretamente pela tragédia sejam condenados e cumpram as penas.

Julgamento dos réus em dezembro de 2021 foi anulado e aguarda novo desfecho/Foto: Reprodução, Youtube, TJRS

MP diz que foco é manter condenação dos réus

Assim, o foco atual do MPRS é manter o resultado do júri que condenou Mauro Hoffmann e Elissandro Spoh (sócios e donos da boate) e Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão pelo incêndio. Os advogados dos réus recorreram e conseguiram anular o júri. Um novo julgamento deverá ser marcado.

Por outro lado, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) divulgou nota apoiando a série ficcional da Netflix.

NOTA DE ESCLARECIMENTO DO MPRS

Confira o teor da manifestação do MPRS postada em redes sociais e no site da instituição:

O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, considerando o interesse público e a realidade dos fatos envolvendo um caso ainda sub judice, vem a público manifestar-se sobre a série intitulada “Todo dia a mesma noite”, produzida e veiculada pela empresa Netflix.

Mesmo cientes de que se trata de uma ficção, é nossa obrigação, como instituição pública, fazer alguns esclarecimentos. Ao apresentar tanto personagens quanto o Sistema de Justiça, seus ritos e regramentos de forma caricaturada em muitos momentos, a obra contribui para a desinformação e para a criação de uma memória coletiva contaminada por versões e por fatos que não ocorreram como apresentados.

Além disso, a série explora, para o entretenimento, a dor de centenas de famílias, ainda enlutadas, que aguardam, em longa espera, a punição dos culpados. E o mais grave, a produção do canal de streaming expõe uma versão para a opinião pública de um caso ainda em tramitação, que poderá ser objeto de novo júri popular, possibilidade que a instituição luta com muito empenho para afastar.

O MPRS vem travando uma longa e árdua batalha para garantir a pronúncia dos quatro réus – responsáveis diretamente pelos homicídios –, a posterior condenação, ocorrida em julgamento realizado em dezembro de 2021 e, atualmente, a reversão da anulação do júri por meio de recursos aos Tribunais Superiores. Vale lembrar que, desde o início, a instituição vem atuando não só para a condenação, mas para garantir a prisão dos culpados.

Além de presos preventivamente por aproximadamente três meses em 2013, foi a partir de recurso do MPRS apresentado ao Supremo Tribunal Federal que os quatro réus voltaram para prisão em 2022 e lá ficaram por cerca de oito meses, cumprindo pena resultante de suas condenações pelo Tribunal do Júri, até a soltura determinada pela Justiça a partir da anulação do julgamento.

Também oportuno destacar que, além dos denunciados por homicídio, outras 47 pessoas foram alvo de ações do Ministério Público, na medida de suas responsabilidades, nas áreas criminal e cível, na Justiça comum e militar.

Concluímos manifestando nossa solidariedade aos familiares e sobreviventes da tragédia e reiteramos nossa disposição e empenho para seguir lutando, o quanto for necessário, para que a justiça seja feita.

Prédio da boate Kiss onde ocorreu a maior tragédia da história do RS/Foto: José Mauro Batista, Paralelo 29

Como foi a tragédia

O incêndio da madrugada de 27 de janeiro de 2013 foi provocado por uma faísca de um artefato pirotécnico disparado por um dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira.

A faísca atingiu uma espuma tóxica que revestia o teto. A fumaça liberada acabou matando a maioria das vítimas, que também sofreram queimaduras e foram pisoteadas. A tragédia matou 242 pessoas e feriu outras 636 que estavam na boate.

A denúncia dos promotores levou em conta a situação da casa noturna, que não tinha sequer extintor de incêndios, para pedir a condenação dos donos da Kiss. A tragédia da Kiss é a maior da história do Rio Grande do Sul e uma das maiores do Brasil.

Compartilhe esta postagem

Facebook
WhatsApp
Telegram
Twitter
LinkedIn