Santa-mariense que morreu no início do mês participou do filme sobre o músico Lupicínio Rodrigues e foi retratado em livro escrito por historiadora da UFSM
Filho de uma doméstica e de um músico do Exército, Marcos Aurélio Marques, que morreu em março, aos 80 anos, era guardião de um importante legado sobre a história da imprensa negra de Santa Maria.
Marcos Aurélio, filho mais novo do casal, herdou da mãe, Cecília, e do pai, Francisco de Assis Elias Marques, o apreço pela militância cultural e de resistência dos negros em clubes sociais da época.
Cecília foi uma mulher pioneira, participando de diretorias do Clube União Familiar e da Escola de Samba Vila Brasil. O pai, que tocava instrumento de sopro, inspirou o menino a se tornar baterista.
“Ele era um bom contador de histórias”, diz a filha Rosangela Marques Cunha, 51 anos, ouvida pelo Paralelo 29 nesse resgate que começou com a historiadora Franciele Rocha de Oliveira, doutoranda em História na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Voz da história no Cinema
Marcos Aurélio era servidor aposentado da UFSM e morreu em consequência de um câncer. Mesmo doente, ele ainda teve tempo de participar de um documentário sobre o músico Lupicínio Rodrigues e de assistir ao lançamento do filme, em Porto Alegre, no dia 15 de dezembro do ano passado.
O longa com direção de Alfredo Manevy em coprodução da Plural Filmes e do Canal Curta! resgata o legado musical e a contribuição artística de Lupicínio Rodrigues, que morou em Santa Maria.
Em 92 minutos de duração, o longa traz um vasto material de arquivos de jornais, entrevistas do compositor gaúcho e depoimentos de artistas, como Elza Soares, e de pessoas que conheceram Lupi, como o santa-mariense Marcos Aurélio.
Historiadora relembrou a contribuição do griot
Foi por meio de um texto publicado por Franciele no Facebook que o Paralelo 29 ficou sabendo da história de Marcos Aurélio. O texto foi republicado no site, neste domingo (26).
No texto, publicado originalmente em 11 de março, um dia após a morte de Marcos Aurélio, a historiadora, que também integra o Grupo de Estudos Sobre Pós-Abolição (GEPA) da UFSM, relembra a biografia do contador de histórias mencionado por ela como griot.
Griot é como são chamados contadores de história, cantores, poetas e músicos da África Ocidental. Por meio da transmissão oral dos acontecimentos, os griots são importantes fontes de conhecimento e para a própria História. Marcos Aurélio, sem dúvidas, era um deles.
Um resgate do União Familiar
Inspirada pelas histórias contadas pelo griot santa-mariense, Franciele escreveu o livro “Moreno Rei dos Astros a Brilhar, Querida União Familiar: Trajetória e Memórias de um Clube Social Negro Fundado em Santa Maria”. A obra de resgate histórico da entidade centenária foi lançada na Feira do Livro de 2016.
Com a ajuda de Marcos Aurélio, Franciele resgatou a história do União Familiar, definida em sua fundação, em 15 de março de 1896, “como uma sociedade de baile, composta de homens de cor”, pelo jornal O Combatente, um periódico da época.
Localizado na Rua Barão do Triunfo, número 855, entre as Rua dos Andradas e Venâncio Aires, no Bairro Bonfim, na região Centro Urbano de Santa Maria, o União Familiar resistiu até os anos 1990, quando deixou de existir. Marcos Aurélio também era um guardião de histórias e documentos da imprensa negra de Santa Maria, principalmente pelo jornal O Succo, de 1921.
Fonte para pesquisadores da UFSM
Além disso, Marcos Aurélio foi e continua sendo uma importante fonte para o GEPA, um grupo de estudos da UFSM que busca resgatar o movimento negro em Santa Maria pós-abolição.
De acordo com o GEPA, Marcos Aurélio foi um grande parceiro do grupo de estudos, “ensinando e compartilhando ensinamentos”. Muito da história dos descendentes de escravos estão nessas memórias.
Em nota divulgada em 11 de março deste ano, um dia após a morte do contador de histórias, o GEPA destacou a contribuição do servidor aposentado da UFSM para o resgate da história dos negros em Santa Maria. Marcos Aurélio compartilhou com os pesquisadores seu acervo particular repleto de registros documentais e fotográficos.
“Sem sombra de dúvidas, era o filho de uma das mais importantes lideranças do associativismo negro de Santa Maria no pós-abolição. Sua família esteve envolvida na direção do Clube União Familiar, no Rancho Carnavalesco O Succo, nos jornais da imprensa negra, nos clubes negros de futebol desde as primeiras décadas do século XX”, descreve a pesquisadora Franciele de Oliveira.
Emoção ao ver documentário
A historiadora relembra, com emoção, a última vez em que esteve com Marcos Aurélio. Foi em 15 de dezembro do ano passado, quando eles viajaram a Porto Alegre, juntamente com um neto de Marcos Aurélio, para assistirem a exibição especial do filme “Lupicínio Rodrigues: Confissões de um sofredor”.
No filme, Marcos Aurélio conta as memórias de seus pais com Lupi na antiga Vila Brasil, e compartilha de sua sabedoria sobre a obra do músico, de quem era fã. Convidado especial, seu Marcos se emocionou.
“Além de conhecer a história do Lupicínio, o pai tinha discos de vinil dele”, diz a filha Rosangela, que não pôde ir a Porto Alegre no lançamento do filme.
Orquídeas continuam dando vida a um legado
Rosangela conta que Marcos Aurélio dedicou os últimos anos de vida às coisas que ele mais gostava, entre elas o cultivo de orquídeas.
O orquidário continua dando vida ao jardim da casa de número 75 na Travessa Hermes Cortes, no limite entre os bairros Bonfim e Rosário, área central da cidade, onde Marcos Aurélio morava. E é parte do importante legado de uma família que preservou e passou adiante a cultura afrobrasileira no Coração do Rio Grande do Sul.