Paralelo 29

A boneca em minhas mãos

Foto: José Mauro Batista, Paralelo 29

EDINARA LEÃO – ARTETERAPEUTA, ESCRITORA E PROFESSORA

A menina carrega a boneca. A boneca que eu seguro, mãe, tem a pálpebra ferida e chora noites e dias o descompasso. Havia planos naquele tempo de penumbra, eu tranquei chaves, gritei, calei, gritei de novo, entrementes, os tempos eram outros, e eu deveras calei. Mas tudo que cala muito volta em desandada agonia. Eu seguro esta boneca, mãe, e te mostro todo dia.

Mãe, esta é minha boneca. Ela tem as pernas moles, e seus ossinhos são tecidos de pano e de borracha. Minha boneca caminha por minhas mãos, e seus passinhos poderiam ser hoje os de uma bailarina velha, mas são inertes. Na verdade, inertes, para os olhos dos comuns, entre nós, mãe, não há segredos, então, tua luz enxerga, e minha alma sabe.

A boneca, entre nós, fala tudo o que passou. Não é para assombro, é para que não esqueçamos o trato feito, nó atado na terra quebrada do tempo. Hoje eu volto para os teus braços, mãe, eu e minha boneca.

Para desatarmos o nó, com amor, e devolvermos a terra um caminho de volta. Há destemperos às vezes, e os desentendidos rasgam os panos de nossa ferida.

Eles não entendem, mãe, que somos feitas do tecido da dor e não fugimos. Eles não têm culpa do que passou entre mim, você e a boneca.

Você não pôde me proteger, e eu não quero ver a nuvem de teus olhos. Quem de nós não precisou lavar os olhos no inferno? A alma sabe, mãe, que a invernia custa a passar. Nas noites, eu canto para a boneca dormir. Um sono ameno atravessa o desespero, não quero ficar insone.

Haverá um canto, dentro de tua noite, que eu possa me deitar, mãe, eu tenho apenas sete anos e meus goles de inocência foram roubados.

Eu quero um pote de mel e um caminho para seguir, nem de sapatos preciso, pois, de meias, também caminho, eu aguento rosetas nos pés. Por que me olhas com teus olhos grandes e pretos e fundos?

Tomo de ti a fortaleza que abandonaste em mim quando me querias muda. Não há crueldade em minhas rochas, só silêncio endurecido de tempo.

Ele repara as pontas de nossas dores e vai molhando de nuvem as cicatrizes. Tu me cuidas. Hoje, mãe, ensina-me o dever da escola, ensina-me a andar entre ventos, toma-me a mão antes de atravessar a rua. Sou tua menina e me amarras o tope no cabelo.

Eu nano em meus braços uma boneca, ela chora em meus braços. Tudo o que minha boneca quer é ser olhada, com outros olhos que atravessam o tempo. Esta boneca já esteve uma vez entre nós, sua voz foi mais forte e eu não entendi.

Olhando em teus olhos hoje, mãe, eu agradeço a vida que tenho e a boneca nas mãos. E lembro a você cada segundo porque estamos em tua casa.

Nós te adotamos para que pudesses fazer o caminho de volta. A volta para a casa, é teu e nosso caminho. E eu não quero que teus olhos chorem.

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