Paralelo 29

LOUISE DA SILVEIRA: Pérolas do cotidiano – a língua portuguesa é chibata

Foto: Marcello Casal Jr, Agência Brasil

LOUISE DA SILVEIRA –  LICENCIADA EM LETRAS PELA UFN E MESTRA EM GEOGRAFIA PELA UFSM

“Negro de alma branca”. “Não sou tuas negas”. “Aquele lá tem o pé na cozinha”. “Da cor do pecado”. Samba do crioulo doido”. “Que negra linda”.

Eu poderia passar o dia inteiro escrevendo expressões que aparentam falsa inocência e povoam o imaginário popular. Quem aí está lendo essas mal traçadas linhas, pode pensar: “lá vem a patrulha do politicamente correto”.

Bom, é um ponto de vista. No entanto, cabe a essa “desagradável mulher” (pertencente à turminha dos direitos humanos), elucidar pontos importantes. O racismo das elites é essencialmente discursivo.

Por meio da fala e da escrita, políticos, jornalistas, estudiosos, juízes e empresários expressam e reproduzem suas crenças, ideologias, planos e diretrizes.” (DIJK, 2008).

A expressão negro de alma branca, por exemplo, ilustra a animalização dos corpos negros, uma vez que, para o imaginário cristão, animais não têm alma, logo, negros os quais no período da escravização, foram tratados como animais, não teriam, dentro do pensamento coletivo a tal alma (condição do corpo humano).

Logo, dada à animalização do corpo negro, é bastante óbvio que  uma das consequências do processo de escravização dos povos africanos (o qual gerou várias projeções imagéticas sobre esses corpos) foi sua generalização como meros animais, desprovidos de razão, inteligência, humanidade e cultura (Sousa, 1983), fato o qual perpassa a memória cultural brasileira.

Portanto, “não se trata apenas de recordação ou interpretação. Memória é também construção simbólica, por um coletivo que revela e atribui valores à experiência passada e reforça os veículos da comunidade” (BENTO, 2022, p.39).

A famosa frase “não sou tuas negas”, novamente recai na ferida histórica do país, tendo em vista que, negras (mucamas), eram utilizadas para além do trabalho braçal, para satisfazer as investidas sexuais de seus “proprietários”, não sendo dado a essas mulheres (até hoje), o direito a respeito de seus corpos.

É fácil inferir que, em conformidade com o Dossiê Violência Contra as Mulheres (2015) “a reflexão sobre a imagem das mulheres também é uma parte importante do enfrentamento a estereótipos discriminatórios que autorizam violências.

No caso específico das mulheres negras, no Brasil, esses estereótipos são agravados pela carga histórica escravagista de objetificação e subalternidade que reforçam mitos racistas como o da mulher negra hipersexualizada sempre disponível (Instituto Patrícia Galvão, 2015, p. 5).

Já participou do “samba do crioulo doido”? Uma das falanges do racismo estrutural brasileiro é o racismo recreativo. No carnaval, por exemplo, muitas são as situações de legitimação do black face.[1]

Devo mencionar Adilson Moreira (2019, p.18) quando ele diz que ser “muito comum ouvirmos o argumento de que produções culturais que reproduzem estereótipos raciais não são discriminatórias porque promovem a descontração das pessoas. Isso sempre ocorre durante discussões sobre a representação de minorias raciais em programas humorísticos.”

A condição de uma pessoa não tem graça. Entretanto, tentam “normalizar” ofensas as quais reviram feridas profundas da população negra.

E quem não ouviu (e pensou ser elogio), “fulana/fulano tem a cor do pecado”? E lá vamos nós novamente para o racismo cristão.

A identidade negra, associada ao prazer e ao sexo e este, demonizado no imaginário cristão, demonstra que não é elogio à cor da pele, mas sim, um fortalecimento de estereótipo.

“A cor da pele colocou homens [negros] e mulheres [negras] no Brasil em profundo desmerecimento social, material e moral […] Fez a mulher negra participar do duro jogo da exploração, da violência e da humilhação” (OLIVEIRA, 2014).

Por fim, embora não se encerre por aqui o repertório racista, é preciso mencionar que “negra linda”. Não lembro de ter ouvido que branca linda em meus 37 anos de existência.

Evidencia-se nas entrelinhas que, “apesar de ser uma mulher negra, é linda.” Mais uma vez entende-se que, “o ser mulher negra na sociedade brasileira se traduz na tríplice militância contra os processos de exclusão decorrentes da condição de raça, sexo e classe (CARNEIRO, 2002, p.181). Existe um padrão de beleza e este (assunto para um outro artigo) é branco e pertencente à classe média.

No racismo nosso de cada dia, a língua portuguesa é uma chibata potente e altamente nociva, a qual contribui luxuosamente para a manutenção da discriminação racial brasileira.

[1]Do inglês, black, “negro” e face, “rosto”, a prática vai muito além da pintura da pele. Durante muitos anos, a ação foi usada para ridicularizar pessoas negras e servir de entretenimento.

Referências bibliográficas

BENTO, Cida. O pacto da branquitude .São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o Feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: NQF. Vol.24, nº2, 2002.

DIJK, T.A. Discurso das elites e racismo institucional. In: LARA, G.P. & LIMBERTI, R.P. (Org.). Discurso e Desigualdade Social. Editora Contexto, 2015. 

MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo / Adilson Moreira. — São Paulo : Sueli Carneiro ; Pólen, 2019.

INSTITUTO PATRICIA GALVÃO. Violência e Racismo. In: Violência contra as mulheres, 2015. Disponível em: < http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/violencias/violencia-eracismo/#assedio-sexual-e-mulheres-negras>. Acesso em: 01 de fevereiro de 2017.

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