Paralelo 29

EICHBAUM: Ai, Morena

Foto: Autoria Desconhecida

JOÃO EICHBAUM – ADVOGADO E ESCRITOR

O pensamento se esvaiu e retirou o nome e o sentido de todas as coisas. Sua vida agora não vai além de um espaço, onde ela se move, sem saber por que, nem para qual finalidade.

É tudo simplesmente um branco. Ela não distingue o perverso do sublime; a euforia, do desespero. Não tem currículo. Não tem presente, nem passado. E, muito menos, futuro. Não sabe sequer se está viva.

Sorri, sem saber que está sorrindo; chora, sem saber por que está chorando. Anda em círculos. Não sabe que além daquela cerca, onde ela não consegue passar, começa o mundo.

Ou então, fica sentada, onde a deixaram, olhando o nada. Seus olhinhos miúdos não se movem, não mostram vida, nem a exasperação da insônia.

E não dizem que sim, nem que não. O mal de Alzheimer a transformou simplesmente numa estátua que caminha como sonâmbula.

Recuso-me a acreditar. Dou as costas para a imagem dessa velhinha miúda, curvada, os cabelos brancos em desalinho, as mãos estendidas sobre os joelhos, com a pele amarrotada, onde veias salientes desenham incógnitas.

Prefiro varar a bruma do tempo, em busca de um carnaval perdido naquela Santa Maria dos grandes carnavais, quando o povo se aglomerava na avenida Rio Branco e na Praça Saldanha Marinho, vibrando com os desfiles e os lança-perfumes.

Prefiro a marchinha que me arranha a alma e me devolve a saudade. Prefiro a lembrança indestrutível daquela morena linda, resplandecente como uma rainha de beleza.

Saltitante dentro do vestido de noiva, ela levantava as mãos com luvas de cetim, no cordão de sua festa de casamento, naquele sábado de carnaval da minha adolescência.

Sem meu nome no edital de convidados, só pude vê-la da rua. E foi a última vez que a vi, movido pela certeza antecipada de que nunca mais a veria.

A noite de sua felicidade me mandava dar adeus às minhas ilusões. A partir de então, em todos os carnavais, enquanto evoco sua beleza de noiva, convoco meu coração torturado, para repetir a marchinha que todos cantavam com ela, nas bodas:

                Ai, morena,

               seria o meu maior prazer

              passar o carnaval contigo,

             beijar a tua boca, e depois morrer…

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