Paralelo 29

Precisamos colher frutos antes das tamareiras

Foto: Acervo do Museu das Memórias (In)possíveis (APPOA)
ARIÁDINI DE ANDRADE – psicanalista, membra do Museu das Memórias (𝘐𝘯)possíveis e membra do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria

Há algumas semanas escutei de uma pessoa querida que a tamareira é uma árvore que pode levar até cem anos para frutificar e que quem a planta não saboreia seus frutos. Parece até que existe o ditado popular ‘quem planta tâmaras, não come tâmaras’.

A pessoa que faz seu plantio cuida, zela e acompanha o crescimento para que as próximas gerações possam saborear seus frutos.

Ao fazer isto transmite uma aposta na partilha e nos laços. Gesto que lembra Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas “a colheita é comum, mas o capinar é sozinho”.  

Há um capinar sozinho que permite colheita comum, como no caso das tamareiras. Mas há também um outro capinar. Aquele que precisa ser coletivo para que esse comum tenha efeito de transmissão em mais pessoas.

Diferentemente da tamareira, há uma semente que só germina, cresce e frutifica, se houver tempo de acolhimento, de escuta, de presença e de suporte de pessoas.

O nome dessa semente é testemunho. Testemunhos de sobreviventes dos campos de concentração nazistas, sobreviventes do incêndio na boate Kiss, da pandemia, das enchentes, do racismo estrutural ou sobreviventes das torturas sofridas na ditadura militar.

Testemunhos de experiências traumáticas, invisibilizados, as margens da história oficial e que somente serão falados se houver quem os escute.

Desde a psicanálise sabemos não há sofrimento maior do que o silenciamento. Ela tem o compromisso ético de escutar e questionar a forma como construímos o laço social e situamos nas discursividades as vozes apagadas.

Quem semeia palavras, não colhe violências. É assim que Raul Pont e Paulo de Tarso Carneiro, ex-presos políticos da ditadura brasileira (1964-85), tem feito há cinco décadas.

Testemunham a experiência na Ilha de Pedras Brancas, também chamada de Ilha do Presídio, no Guaíba, onde foram presos nos anos 70.

Em 2022, o Museu das Memórias (𝘐𝘯)Possíveis da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) organizou uma viagem a Ilha.

Na travessia de aproximadamente uma hora e enquanto percorrem as ruínas do presídio, Paulo e Raul contam com emoção sobre o período em que estiveram presos.

Na mesma oportunidade a artista Manoela Cavalinho realiza seu trabalho dos Epigramas, marcando com palavras autocolantes estes mesmos locais tão ricos de memórias.

Essa viagem foi documentada e resultou no filme “Viagem à Ilha do Presídio: Ilhas de memória, pontos de luz”, um registro sobre tempos muito difíceis e traumáticos do nosso país, que, assim como os Epigramas de Manoela, precisam ser inscritos na memória.

O documentário é de Vanessa Solis Pereira, psicanalista, membra da APPOA e Instituto APPOA, integrante do Museu das Memórias (𝘐𝘯)Possíveis e do Coletivo de Psicanálise de Santa Maria, documentarista, diretora e roteirista do documentário “Para Além da Guerra” (2014).

Ele será exibido na próxima segunda (04/11/2024), às 20h30, online e contará com a presença de Raul e Paulo. O evento é gratuito e as inscrições são realizadas em appoa@appoa.org.br.

Ele faz parte de uma série de atividades do Museu em 2024 destinadas a descomemorar os 60 anos do golpe empresarial-militar de 1964. 

Esse fime é um fruto colhido há apenas cinco anos do seu plantio. Tempo de embarcar, de escutar testemunhos, de construir esse registro e de emancipá-los no documentário.

Um fruto para aqueles que aqui estão e para os que virão. Ele resgata a aposta no laço do plantio de tamareiras, contudo, diferente delas colheremos esse fruto em vida e contando com as vidas de Raul e Paulo antes dos cem anos. Precisamos colher frutos antes das tamareiras.

Compartilhe esta postagem

Facebook
WhatsApp
Telegram
Twitter
LinkedIn