Paralelo 29

LUDWIG LARRÉ: O homo algoritmo

LUDWIG LARRÉ

Jornalista

O Chiquinho entrou em uma agência bancária, lá por meados dos anos 1990, logo que implantados os primeiros terminais de auto-atendimento. Semana de pagamentos, longas filas até os caixas e, à frente dele, um senhor cujas vestes simples e funcionais identificavam um trabalhador rural.

Eis que a fila andou, e o agricultor, fascinado com o terminal de auto-atendimento sendo usado por outro cliente, não acompanhou os que avançaram em direção ao caixa.

Abriu-se um buraco na fila, e o Chiquinho tocou o ombro do colono para alertá-lo a seguir adiante. Sabe como é essa gente maravilhosamente pura do interior, né? A cutucada do Chiquinho era a deixa que nosso personagem esperava para puxar uma prosa.

– Mas o senhor vê? Hoje em dia, é tudo “por tremédio” de computador! – soltou o simpático homem do campo ao Chiquinho. Virou piada interna e bordão consagrado na nossa turma.

LUDWIG LARRÉ – Crônica: O aniversário

A espécie humana passou a ser reprogramada quase três décadas antes, quando um maldito bando de hippies, em vez de ficar de boas ouvindo The Grateful Dead, teve uma bad trip de LSD no Vale do Silício.

O software da evolução natural, desenvolvido, aperfeiçoado e rodando sem bugs ao longo de milênios e milênios, se tornou insuficiente às pretensões do bicho homem.

Aí já se vão duas gerações. Tempo suficiente no novo ritmo evolutivo ditado pela tecnologia para que o homo sapiens incorporasse a mutação, no mínimo comportamental, ditada pelos algoritmos.

A espécie bípede, com seu conjunto de instintos de sobrevivência, necessidades materiais, emocionais, intelectuais e espirituais relativamente harmonizados por comportamentos sociais e mecanismos neurolinguísticos inerentes à condição humana, foi construindo e impondo novos paradigmas a si própria.

LUDWIG LARRÉ – Crônica: Minha sogra é uma peça

Não se trata aqui de negar a ciência, muito antes pelo contrário. Se de um lado a tecnologia proporciona avanços inquestionáveis na melhoria das condições de vida da humanidade, de outro, a ciência precisa buscar caminhos que contornem preocupantes alterações sócio-comportamentais decorrentes da dependência e da mediação tecnológica das relações humanas.

Por vezes, não reconheço meu semelhante no ethos contemporâneo do cotidiano regido pelo condicionamento de reações a estímulos codificados por programações algorítmicas.

Cada vez nos reconhecemos menos em nossas noções de espaço próprio e de limite do espaço alheio nas relações pessoais. A interface dos computadores, da internet, das redes sociais nos limita e afasta do contato com o outro.

LUDWIG LARRÉ – Crônica: Estátua viva

Cada geração que se sucede percebe a si própria cada vez mais conectada a um coletivo global de espécie, ao passo que, numa velocidade assustadora, vamos perdendo a noção do outro e a capacidade de nos relacionarmos com nossos semelhantes e com o mundo exterior.

O homo sapiens acelera seus passos bípedes em um ritmo alucinante para se tornar o homo algoritmo. Ou seria homo egoritmo, uma vez que o processamento de dados informáticos define a nova formatação do ego?

A tecnologia já hackeou e está reprogramando até o sistema de neurotransmissores. O homo algoritmo reage cada vez menos a fatores biológicos e cada vez mais a estímulos artificiais para liberar endorfina, serotonina dopamina, ocitocina e outras substâncias responsáveis pelas conexões neuronais.

LARRÉ – Crônica: O Dia da Terra

Estamos diante de uma maneira nova e pouco conhecida de processar a realidade e estabelecer as conexões que determinam o funcionamento do organismo individual e do organismo coletivo.

O homo egoritmo, como se fora o Cão de Pavlov, absorve condicionamentos impostos pelos algoritmos.

Mais que isso, obedece a comandos programados por combinações de códigos binários destinados originalmente a induzir o consumo material, mas que trazem consigo efeitos colaterais altamente nocivos do ponto de vista emocional, psicológico e social.

O semelhante vai se tornando cada vez menos relevante nessa relação mediada pela tecnologia. O percurso entre si próprio e o outro foi abreviado pelo atalho entre o ego e a interface tecnológica.

LARRÉ – Crônica: Um gato vadio, o mago e Raul Seixas

Os instintos e necessidades humanas primordiais vão sendo substituídos por comandos para consumir a qualquer custo, obter satisfação com o reconhecimento nas redes sociais, valer-se delas para dar vazão à agressividade e ao ódio ou ainda para cometer chacinas contra inocentes sob influência de jogos de computador.

O homo algoritmo se descola cada vez mais das vivências reais para viver realidades virtuais.

A inteligência artificial – essa musa de músculos trabalhados em academias de ginástica, implantes de silicone e preenchimento facial – é a nova divindade do homo algoritmo. O primata ainda é bípede, porém, e parece se tornar cada vez menos inteligente.

LUDWIG LARRÉ – Crônica: Comentarista do BBB

Como adiantou ao Chiquinho aquele simpático senhorzinho na fila da agência bancária lá nos anos 1990, vivemos “por tremédio” de computador. Se uma nova espécie humana sobreviver até lá, daqui a muitos milênios, o que restar de mim deverá estar entre os fósseis a serem estudados como elo perdido antes do homo algoritmo.

Algum artefato, talvez um livro, enterrado sobre camadas geológicas de lixo tecnológico e material radioativo, há de sobreviver ao tempo para comprovar a existência de indivíduos que repetiam “volta que deu merda” na fila do pão da linha evolutiva.

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