Paralelo 29

EICHBAUM: O sonho desfeito

JOÃO EICHBAUM

Advogado e escritor

Na idade feliz de menino, a gente sonha, devaneia, constrói heróis. Meu herói era o primo Vidal.

Na idade dos delírios, a adolescência, a gente sonha com uma princesa, que não precisa ser princesa, nem rainha das piscinas, desde que seja bela, e que nos livre dos pesadelos.

Você era o sonho que derretia meu coração. Mas meu herói continuou a ser o primo Vidal, porque meu sonho de ganhar a vida, o de ser maquinista, tinha se inspirado nele.

EICHBAUM: O sonho dos meninos (III)

Vidal era um rapaz polido, de temperamento brando, um porte com toques de nobreza. Mas nada disso o poupou dos calos nas mãos, do vermelho nos olhos, do ar de cansaço, hauridos naquele trabalho escravo, juntando na pá pesada o carvão que o fogo pedia dele como ajudante de foguista.

Foi assim que ele começou, nas locomotivas que puxavam trens de carga, com vagões enfileirados, fazendo ziguezague no parapeito das montanhas, ou cortando campos na linha da fronteira.

E foi criando laços com os monstros de ferro, conhecendo-lhes as intimidades, os revezes, os maus humores e forças indomáveis, que Vidal conquistou, depois de sete anos, o sonho de ser maquinista.

EICHBAUM: O sonho dos meninos (II)

A subida da serra, embora traçada em curvas para atenuar o aclive, era tão acentuada, que se tornava impossível a uma só locomotiva conduzir a composição. Sempre era necessária outra locomotiva, engatada no último vagão, para somar forças. No Pinhal, desengatada do comboio, a locomotiva do reforço, retornava em marcha-a-ré, à escoteira.

Naquele sábado de aleluia, Vidal cumprira essa rotina, conduzindo a locomotiva 1013, desatrelada da composição, no retorno à marcha-à-ré. Tão logo chegou ao declive, porém, a máquina tomou maior velocidade.

Vidal acionou os freios, que não deram resposta, e a locomotiva desandou em desabalada carreira.

CRÔNICA: JOÃO EICHBAUM: O sonho dos meninos

O terror encorajou o foguista a jogar dados com o destino: jogou-se da máquina. Mas Vidal era o comandante e não teve o direito de fugir da morte. Morreu, tentando dominar o monstro que o matou: queimado pela água fervente da caldeira e esmagado pela 1013.

No domingo da ressurreição, ouvindo a canção da morte nos silvos de despedida da locomotiva de socorro, antes que a última pá de terra cobrisse o caixão do meu herói, já estava enterrado, definitivamente, meu sonho de ser maquinista.

Compartilhe esta postagem

Facebook
WhatsApp
Telegram
Twitter
LinkedIn

Publicidade

Relacionadas

Mais Lidas

Nothing found!

It looks like nothing was found here!