Paralelo 29

EDINARA LEÃO: O braço do rio

Foto: Margi Moss, Agência Brasil

EDINARA LEÃO

Escritora e doutora em Literatura

Se Freud o tivesse conhecido, bem poderia chamá-lo o “Mito de Nair”.

Nair era jovem, inexperiente, nada sabia da vida. As coxilhas habitavam o mato virgem que era sua alma. E o horizonte pétreo era seu infinito.

Nair, novinha, aos dezesseis anos, era uma desaventada. “cabeça nas nuvens”, diziam. Não daria boa coisa.

Imaginavam os demais, ali por aquelas paragens. A moça, que habitava um galpão mal coberto, encafifava de pensares.

Pensar muito deixa louco, amedrontavam-se. Numa manhã de domingo, Nair foi tomada de uma decisão:

– Vou para a cidade, quero conhecer o mundo.

EDINARA LEÃO: Via Maria

O velho Maneco, pai da moça, baixou os olhos. Só a mãe poderia dissuadi-la de tão estapafúrdia ideia. As mulheres sabem-se.

Mas a mãe falecera há três anos. E ele não teria força contra a resolução da filha, colhida de muito horizontear. Ele, o pai, o velho Maneco, o que sabia? Cuidar o pasto das quatro vaquinhas – e elas andavam magrelas.

Baixou a cabeça. O medo de a filha perder-se no descampado, vastidão desmatada por detrás da coxilha.

O medo passa a engolfar a alma do velho. Ela iria de qualquer jeito, contra ou favor dos ventos – ele sabia.

Nair gostava mais do rio que da terra. Emaranhava-se nas dobras do rio. Sereiava. A cantoria nublava a alma do pai.

EDINARA LEÃO: Tecendo palavras em quatro poemas

Era uma Diana das águas, seria uma nereida do desaguadouro, soubesse o que era uma nereida. Mas dessas coisas não entendia.

Sabia apenas que o rio conduz, leva e traz coisas e pessoas.  Nas manhãs de domingo, a criação no pasto, sobrava tempo.

O cheiro da grama, o gosto da aurora, o leite da Hybris, quase a conta-gotas – tempo de magreza. Véspera de fartura. Matinava nas dobras do rio, onde iria dar depois da terceira dobra?

Dois poemas e uma crônica na voz de Edinara Leão

Esquecia a paisagem, a margem… e clamava o sempre do rio. Havia o sem paradeiro, era isso que havia para além do braço do rio. O rio serpenteava. Nair, pura, não profanada, desejava.

Foto: Ministério do Turismo, Arquivo da Agência Brasil

A ideia matutava na cabeça. Não sabia como. Não havia professores por aquelas bandas. Escola tão longe que não dava para ir.

Aprendera o ABC nas férias, com a menina da fazenda. Sabia escrever o nome: Nair da Silva Ferreira. E isto fora seu primeiro orgulho, lembrava no intervalo entre duas ideias que embretavam sua mente.

A ideia habitava-a, quase famigerada. Incessante. Noite e dia. Desarvorada e sem trégua. Mas à noite a ideia ficava possuída de formas tão claras que a sufocava. Ela deveras andava meio desnorteava de tanto idear.

EDINARA LEÃO – Conto: Bonecas de pano e de pele

Já não vivia a vida verdadeira, a vida soava-lhe tão pequena investida que estava na vastidão da ideia. Tão clara. Tão nítida.

Um dia veio o caminhão de lenha. Aprochegava-se o frio do inverno. O inverno é um tempo de ausências, pensou num repente, coração na boca.

Nair conhecia a geada do sereno, não a da alma. Para ela tudo era possibilidade, mesmo as pedras conversavam.

Quem sabe o rio a levaria para longes terras. Teria que ter pelo menos um caíque. Ela não tinha. E caíam-lhe os braços.

Mas naquela manhã meio cinza, desapessoada, de perditude, enquanto entranhava narinas adentro o cheiro da lenha recém-cortada pelo pai, algo tão veloz como fogo que queima sem mansidão passou qual raio em sua alma desprevenida.

– É a minha chance, pensou. A ideia sem sombra, cristalina como a água.

Edinara Leão traz militância cultural para o Paralelo 29

Levara a lenha para casa entrando pela porta dos fundos. Coração disparatado. E enquanto o pai recebia do homem da lenha, juntou dois trapos, os sem rasgos, que muito mais não tinha.

Amontoou numa sacola cheia de picumã, até então sem serventia. Quando o homem embarcou, Nair pula:

– Vou com o senhor!

O coração do pai salta e para. Ele não sabe o que fazer. Ela vai. Não posso impedir. E o sorriso de quem recebia um dinheiro parco fica ali, cortado ao meio. Num gesto súbito, que aquele momento era tão veloz, alcança o dinheiro à filha. Era o máximo que podia fazer.

Estende a mão. Salta uma lágrima desavisada das coisas do mundo. Está consumado, pensam em uníssono.

CRÔNICAS DE UM CAMINHANTE: A Santa Maria que a gente nem sempre vê

Pai e filha no instante miserável da despedida. Do coração, a visão de uma frase: Ela vai. Ela vai. A repetir-se como um lenho na correnteza. Ela vai!

Nair beija a lágrima do pai, pega o dinheiro. O tempo morre. Sobe rápido, que o caminhão já roncara. Nem o pai a entristece. Ela vai.

Sabe o que quer do desmundo além da distância. E segue. Leva a dobra do rio dentro de peito. O motorista dá a partida.

Compartilhe esta postagem

Facebook
WhatsApp
Telegram
Twitter
LinkedIn

Publicidade

Relacionadas

Mais Lidas

Nothing found!

It looks like nothing was found here!