JOÃO EICHBAUM
Advogado e escritor
Ora se engalfinhavam com uma fúria sanguinária de galos de rinha, ora se soltavam, ficando um mirando o outro, com chispas de ódio nos olhos e os punhos cerrados. Um deles já sangrava no rosto, com o sangue lhe escorrendo pelo pescoço. Uma turma de marmanjos observava aquela cena de selvageria sem intervir.
Um dos contendores não era ninguém menos do que Combate, o indivíduo mais violento na história do mundo marginal de Santa Maria.
Todos o temiam porque sempre andava armado de faca. Ninguém se atrevia a medir forças com ele. Mas, naquela tarde, um humilde carregador da gare o enfrentou.
EICHBAUM: O trem
Só com a chegada da polícia a cena terminou, sem tragédias. Mas, na entrada da estação, ficaram as marcas de sangue do pobre carregador.
Os carregadores eram os mais humildes dos trabalhadores da gare. Um boné sem aba, um tipo de casaco que mais lembrava uma bata e a calça, tudo azul celeste: era o uniforme que os distinguia dos ferroviários.
Eles próprios se chamavam “carregadores” e era assim que se anunciavam aos passageiros, gritando, levantando os braços, antes mesmo que os freios dos trens parassem de ranger e o comboio estacionasse. Ou ficavam na calçada da estação, aguardando passageiros que iriam embarcar.
JOÃO EICHBAUM: Gente do futebol (III)
A função deles era carregar malas. Mas se aventuravam à complicada missão de marcar lugar para os passageiros no trem. Não havia reservas, nem assentos numerados. Era tudo disputado no corre-corre.
Proibidos de entrar no trem, eles lançavam mão de todos os recursos. Abriam, como podiam, as janelas do trem ainda em movimento e, através delas, jogavam bolsas, pacotes, fosse o que fosse, para marcar posse do assento. Cobravam por tarefa. Eram gente humilde, sem instrução, sem formação profissional, trabalhavam para comer.
JOÃO EICHBAUM: Gente do futebol (II)
A cena violenta ocorrida na frente da estação, certamente fora provocada pelo famigerado Combate: onde houvesse confusão, lá estava ele.
Mas, daquela cena, que jamais me fugiu da memória, brotaram indagações. Seriam os carregadores trabalhadores avulsos? Não tinham patrão? Alguma entidade os congregava? Quem os admitia ao serviço? Perguntas que ficaram no ar, no lado sombrio da história ferroviária.