Paralelo 29

A politização da vacina: o lugar onde esquerda e direita se encontram

Foto: Tânia Rêgo, Agência Brasil

SILNEI SCHARTEN SOARES – Professor universitário e doutor em Comunicação pela Universidade de Brasília

Fui tomar a terceira dose da vacina.

Quando cheguei ao posto de saúde, me disseram que havia acabado.

Bom sinal, não? Significa que as pessoas estão se vacinando, apesar de todo o negacionismo.

Significa que elas confiam na ciência, afinal.


Mas também significa que as pessoas estão com medo. Algumas, beirando a paranoia, como foi o caso de um indiano flagrado tentando tomar a décima segunda dose.

Quando chegamos nesse ponto, é sinal de que o capital venceu a ciência – com o apoio inestimável da mídia corporativa e da política institucional.

Tem gente lucrando – e muito – com o estado de alerta em que fomos lançados por esse conjunto de forças. A indústria farmacêutica agradece – mas não só ela.

SILNEI SCHARTEN SOARES Games, mídia e Saudades (Parte IV – final)

Durante a pandemia, as 500 pessoas mais ricas do mundo aumentaram seu capital em 1 trilhão de dólares. 1 trilhão de dólares! Enquanto isso, no Brasil, miseráveis disputam um pedaço de osso pra ter o que comer.


E aí, começo a me perguntar sobre a responsabilidade dos intelectuais de esquerda nesse cenário – principalmente, seu apoio incondicional à ciência. Vou defender aqui que esse apoio é tão prejudicial à ciência quando o negacionismo. Porque esse apoio é político. E não teria como ser diferente. A esquerda sempre enxergou a ciência por um viés político.

O que é surpreendente agora é que essa politização se tornou completamente acrítica. A defesa da ciência, feita atualmente pela esquerda, rendeu-se à polarização. E, na polarização, não há espaço para nuances, nem para a crítica – e, muito menos, para a dialética.

Crença incondicional à ciência e negacionismo se colocam nos extremos/Foto: Fiocruz, Divulgação

SILNEI SCHARTEN SOARES: Games, mídia e Saudades (Parte III)

Sim, a dialética, aquela velha ferramenta intelectual que permitia compreender os fenômenos como intrinsecamente contraditórios. A dialética, que enxergava, no mesmo objeto, aquilo que ele aparenta ser e, simultaneamente, aquilo que denunciava essa aparência como… aparente.

Será que os defensores incondicionais da ciência, nossos contemporâneos, não leram Adorno e Horkheimer? Não refletiram com Habermas? Desconhecem Benjamin?

Talvez. Mas, alguns, certamente, leram.

Então, é preciso buscar respostas noutro lugar.

A defesa incondicional da ciência é apenas o avesso da crítica dialética à ciência. A esquerda é responsável por ambas.

Por que isso aconteceu?


SILNEI SCHARTEN SOARES: Games, mídia e Saudades (II)

Quem sabe, com o passar dos anos, a crítica tenha se desviado de seu caminho e se enrijecido em fórmulas fáceis? Quem sabe a dialética tenha se tornado sua própria antítese, e a síntese é isso que estamos vendo aí: um pensamento enrijecido, pobre em argumentação e fraco em raciocínio, contaminado pela lógica binária e algorítmica das redes sociais, expresso em frases que caibam nos limites impostos pelos apps?


Se isso é surpreendente no pensamento da esquerda, o que dizer do pensamento pós-estruturalista? Se causa estranheza ver um leitor de Adorno defendendo a ciência com unhas e dentes, o que dizer de um leitor de Deleuze, Derrida ou Foucault?


Toda a crítica da esquerda à ciência – seja ela dialética ou não – é exterior à própria ciência. As críticas não vêm dos cientistas, que conhecem seu ofício. Vindas de fora, as críticas ignoram que grande parte do trabalho dos cientistas é, justamente, fazer a sua própria crítica.

SILNEI SCHARTEN SOARES: Games, mídia e Saudades (I)

Cientistas revisam as pesquisas de seus pares, não com a intenção de demolir o edifício da ciência, mas de reforçar seus alicerces. Isso só é possível se a crítica for – ao menos, idealmente – imparcial e objetiva, baseada em evidências e no raciocínio lógico.


Quando a esquerda, hoje em dia, apoia a ciência, a parcialidade impera. Não há mais dialética. O discurso em defesa da vacina elege como exemplo resultados de pesquisas científicas que reforçam os argumentos que se pretende defender, e deixa de lado aqueles que os contradizem (olha a dialética aí, de novo).

Ao agir assim, a esquerda, inadvertidamente, se torna uma aliada da mídia corporativa, da política conservadora e da indústria farmacêutica – por mais surpreendente que isso possa parecer.


É uma escolha orientada politicamente. Por isso, ignora qualquer pesquisa que não se adeque ao ponto de vista que se quer que prevaleça. Quando o discurso da esquerda em apoio à ciência incorpora alguma descoberta contraditória, é apenas para qualificar a pesquisa como “negacionista”.

Com isso, investigações independentes, que questionem o uso indiscriminado da vacina, por exemplo, têm sua credibilidade questionada – e o que é pior, por leigos. O apoio da esquerda à ciência, assim como sua crítica, continua exterior. Mas, agora, é desprovido de nuances.

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A direita faz a mesma coisa, com o sinal trocado – ela ignora as investigações que apontam a eficácia da vacina, e enfatiza aquelas que indicam falhas nos procedimentos dos laboratórios – isso quando faz referência a algum relatório científico sério, o que é raro. O procedimento normal é disseminar fake News. Contra as boas intenções da esquerda, a direita contra-ataca com a má fé.


Então, tanto à esquerda quanto à direita, o posicionamento é sempre motivado por interesses políticos. Quando a esquerda se posiciona a favor da vacina, o que a move é uma intenção política, e não, científica.

Sempre foi assim, inclusive quando o pensamento de esquerda se posicionava CONTRA a ciência – ou melhor, contra uma determinada concepção de ciência.

Esquerda e direita têm visões diferentes sobre a vacina, e debate vai para a polarização/Foto: SEC, PMSM


Não estou dizendo que a ciência sempre tenha razão e não mereça ser criticada. De maneira nenhuma. Não acredito na neutralidade da ciência. Chamo a atenção para o fato de que toda crítica externa ignora aquilo que é inerente à atividade da ciência – fazer a sua própria crítica, com base em procedimentos elaborados pela comunidade científica.

O problema da crítica externa é justamente desconhecer os procedimentos e critérios que a ciência elegeu como pertinentes a sua atividade.

Ser leigo, nesse caso, é um empecilho ao debate, qualquer que seja o posicionamento adotado.

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Atacar ou apoiar a ciência de maneira incondicional, a partir de critérios exclusivamente políticos, põe no mesmo saco tanto quem defende a vacinação quanto quem é favorável à consulta pública sobre a necessidade de vacinação em crianças. São ações espelhadas. Uma imagem é o reflexo da outra.


Se à direita cabe o rótulo de negacionista, a esquerda poderia tranquilamente ser chamada de “afirmacionista”. São posições extremas.

Prefiro o caminho do meio.

E, no meio, está o signo. Há que saber interpretá-lo.

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