Grupo de familiares de vítimas do incêndio da boate, que completa 10 anos na sexta-feira, critica o que chama de “mercantilização” da dor
Às vésperas de completar 10 anos da tragédia da boate Kiss, em Santa Maria, duas produções de TV que estreiam nesta semana estão gerando polêmica e protesto de parte de familiares que perderam pessoas no incêndio que deixou 242 mortos e 636 feridos na madrugada de 27 de janeiro de 2013.
Uma dessas produções, a série dramática Todo Dia a Mesma Noite, estreou nesta quarta-feira no streaming Netflix. A produção é baseada no livro reportagem da jornalista mineira Daniel Arbex. A série da Netflix é uma ficação. Ou seja, é uma história ficcional embasada em fatos reais.
A outra produção, que estreia amanhã, quinta-feira (26), é a série documental Boate Kiss – A Tragédia de Santa Maria, uma produção do streaming Globoplay, da Rede Globo, que tem como diretor o jornalista santa-mariense Marcelo Canellas.
Diferentemente da série dramática da Netflix, a série da Globoplay é um documentário sobre a incansável luta por justiça dos sobreviventes e dos pais das vítimas do incêndio.
Pais descontentes criam grupo de WhatsApp
Indignados com o que chama de “exploração financeira da tragédia”, alguns pais e familiares de vítimas começaram uma mobilização e criaram um grupo de Whatsapp para discutir o assunto.
“Está havendo uma exploração financeira da tragédia. Estão usando a dor dos pais para ganhar dinheiro”, diz o comerciante Eriton Luiz Tonetto Lopes, que perdeu a filha Évelin Costa Lopes, de 19 anos, na Kiss.
Na madrugada de 27 de janeiro de 2013, Évelin foi a uma festa de aniversário de uma amiga na boate e acabou sendo uma das 242 vítimas que perderam a vida no incêndio.
Segundo Eriton, o grupo de pais, familiares e sobreviventes constituiu uma advogada para questionar a destinação do dinheiro arrecadado pela Globoplay e pela Netflix.
Pai de vítima quer que parte do lucro seja repassado para tratamento de sobreviventes e para a construção de memorial
De acordo com Eriton, a intenção é fazer com que as duas plataformas repassem parte dos lucros com a exibição das produções para as famílias que ficaram sem sustento e para sobreviventes pagarem custos de tratamento médico e psicológico.
O pai de Évelin também critica o fato de as produções sobre a Kiss provocarem ainda mais dor aos familiares. A opinião dele é endossada por vários participantes do grupo. Há pais passando mal por conta das séries, segundo relatou Eriton ao Paralelo 29.
“Eles (Globoplay e Netflix) não pediram permissão para os outros pais”, diz o comerciante, que defende uma ação judicial para que outras produções semelhantes não venham a ser exibidas sem o consentimento de todos os familiares de vitimas.
Eriton também defende que parte do dinheiro que as emissoras ganharem seja destinado à construção de um memorial em homenagem às vítimas.
Jovem que perdeu irmã desabafa em rede social
Quem também expôs sua revolta foi Géslen Costa Lopes, irmã de Évelin. Em seu perfil no Facebook, a jovem criticou a exibição da série da Netflix, que já estreou.
“Venho aqui deixar registrado minha indignação a respeito do filme “todo dia a mesma noite” Triste saber que muitos vão lucrar com esse filme, pois com toda a certeza barato não é para fazer um filme com tanta repercussão. Minha mãe perdeu uma filha e eu uma irmã e só nós sabemos a dor que sentimos, e acredito que reviver tudo isso com cenas tão fortes seria muito doloroso. Acredito que esse filme irá trazer ainda mais dor àqueles que estão se tratando até hoje com a perda ou até mesmo não conseguiram aceitar a partida de alguém tão amado”, diz a jovem no post.
Elenco da Netflix veio a Santa Maria
Na última sexta-feira (20), a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) recebeu a visita de integrantes do elenco e da produção da série da Netiflix.
Os atores Thelmo Fernandes, Débora Lamm e Paola Antonini vieram à cidade com a diretora Júlia Rezende, a assessora de imprensa Daniela Pessoa, e a escritora Daniela Arbex, consultora criativa da série. Pais de vítimas e sobreviventes da tragédia acompanharam a visita.
AS SÉRIES POLÊMICAS
NA NETFLIX
A série Todo Dia a Mesma Noite, que estreou nesta quarta-feira (25), é uma produção nacional que reconta a tragédia da boate Kiss de um ponto de vista ficcional. A série não se trata de um documentário, como é a produção da Globoplay, mas sim uma dramatização do caso Kiss, tanto do ponto de vista do incêndio, como, também, da luta das famílias por justiça.
Embasada no livro de mesmo nome da jornalista mineira Daniela Arbex, a narrativa ficcional é desenvolvida em cinco episódios. A série fala das circunstâncias do incêndio, da investigação policial e da espera de justiça.
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NA GLOBOPLAY
Boate Kiss – A Tragédia de Santa Maria é uma série documental sobre a luta por justiça dos sobreviventes e dos pais das vítimas do incêndio.
A estreia está marcada para esta quinta-feira (26). Em Santa Maria, haverá a exibição do primeiro episódio também nesta quinta-feira, às 21h, no auditório do Colégio Marista para convidados
Dividida em cinco episódios, a produção da Globoplay é dirigida pelo jornalista Marcelo Canellas, que morou e se formou em Santa Maria e refaz a sucessão de acontecimentos que levaram à tragédia;
“A nossa ideia inicial era contar a história da boate Kiss tendo o julgamento como pano de fundo, imaginando que o julgamento iria chegar a um desfecho. No entanto, não houve esse desfecho porque o julgamento foi anulado. É uma história de luta de um grupo de mães, pais e sobreviventes por justiça. E como esse sofrimento ficou sendo remoído ao longo do tempo e retornando como se fosse algo sem fim”, explicou o jornalista em comunicado oficial.
Na última segunda-feira (23), Canellas participou de uma live sobre a série documental na Rede Sina, plataforma de criação de conteúdo de Santa Maria conduzida pela jornalista Melina Guterres.
A série contém imagens inéditas do incêndio e depoimentos de testemunhas que acompanharam a madrugada de 27 de janeiro de 2013.
Produzida pela Morena Filmes para a Netflix, a minissérie tem produção executiva de Mariza Leão, Tiago Rezende e Gustavo Lipsztein, e consultoria criativa de Daniela Arbex, autora do livro Todo Dia a Mesma Noite: A História não Contada da Boate Kiss (2018), que dá nome à série.
O QUE DIZ A ADVOGADA CONTRATADA PELO GRUPO DE PAIS
A advogada Juliane Korb confirmou ao Paralelo 29 que foi procurada por um grupo de pais e familiares que estão bastante indignados com a série da Netflix. Juliane disse ao Paralelo 29 que a ação em estudo se refere apenas à série embasada no livro de Daniela Arbex. Ou seja, não inclui a série documental da Globoplay, que ela entende ser um documentário.
“O que os pais criticam é a mercantilização, a espetacularização da tragédia, para ganhar dinheiro. Queremos transparência. Eles querem saber quem ganhou e quanto”, explica a advogada, que iria assistir o primeiro episódio da série ficcional da Netflix para ver que tipo de ação cabe contra o streaming.
Em princípio, segundo Juliane, a ação poderá pedir reparação pela extensão de danos aos pais. O Paralelo 29 está aguardando o pronunciamento da Globoplay e da Netflix.