JANAÍNE PERINI – DESIGNER
Desde quando foi demarcado o quanto a necessidade de resposta a essa pergunta vem, mesmo sem ser requisitada, fiquei tentando formular o que vivi e vivo do lado de cá para além das lembranças.
Tenho na memória com nitidez onde estava e o que fiz. Como quase todo mundo tem. Era período de férias da escola e, ainda adolescente, há alguns dias tinha viajado sozinha para a casa de uma amiga que morava em outra cidade.
Acordei e, enquanto escovava os dentes, fui avisada por essa amiga que “algo tinha acontecido em Santa Maria”—onde meu irmão morava na época.
Lembro de, já com um nó na garganta, sair da casa, atravessar o quintal com piscina e subir os degraus até outro cômodo onde ficava uma cozinha com sala de estar, a tv já ligada e as notícias correndo.
O número de mortes aumentando rapidamente na chamada escrita em baixo da tela, o barulho de sirenes e as imagens em looping da fachada da Kiss durante a madrugada alternavam entre a fala de um jornalista e outro. Eu tinha só um celular antigo, ainda de tecla na época, sem Facebook, Instagram ou Whatsapp e tentei ligar para o meu irmão.
Chamou, chamou e deu caixa postal. Engoli seco, já sentindo que me faltava ar. Liguei para os meus pais, que também não atenderam. Nesse momento eu já tinha certeza que teria que lidar com o que então era, e talvez ainda seja, o meu maior medo.
Liguei de novo para os meus pais que atenderam no segundo bipe e afirmavam que estava “tudo bem”. Ainda assim, sabia que só ficaria tranquila quando ouvisse a voz do meu irmão.
Liguei, um bipe, dois, três e então ouço um “oi” do outro lado da linha, conversamos rapidamente, firmando o pacto de que estava “tudo bem” e ao desligar o telefone é quando encontro um respiro de alívio, ainda que com o nó na garganta do choro preso.
Só mais tarde que me encontro com a mensagem que ele deixou no Facebook durante a madrugada. Até que ponto está (va) tudo bem? Um mês depois chegaram as férias dele e, com meus pais, viemos buscá-lo em Santa Maria. Lembro do silêncio e do vazio da cidade, de um frio de percorrer a espinha, ainda que em meio ao calor de pleno final de fevereiro.
Dois anos depois vim pra Santa Maria fazer faculdade — foi o que meu irmão fez, foi o que primos e primas fizeram também. Cheguei aqui ciente da Kiss, e também constrangida e incomodada.
Ir no Carrefour era incômodo porque era perto demais, e quem dirá então subir a Andradas, que mesmo de ônibus evitava passar e olhar. Por “feitos do acaso”, a primeira amiga que fiz era sobrevivente, iniciando o mesmo curso que eu e voltando a sair para festas 2 anos depois do incêndio.
Fomos cúmplices e confidentes compartilhando nossas histórias e perdas de forma detalhada, e depois tentando fazer das festas, que ambas frequentavam pela primeira vez, um espaço seguro, onde poderíamos nos divertir.
No entanto, foram incontáveis as vezes em que saímos às pressas para o lado de fora em função do sentimento de sufocamento, por estar cheio, por ter algum tipo de fumaça, por alguma luz lembrar algo da Kiss ou seja o que for…
Querendo ou não, havia um pânico iminente no silêncio das trocas de música ou na espera demorada das filas do banheiro. Sei que poderíamos não olhar pro prédio, que hoje padece em ruínas, quando passávamos juntas de ônibus, mas a convivência do que a Kiss foi (e é) era constante.
Minha amiga perdeu quem era até então o amor da vida no dia 27, e alguns anos depois passei por uma perda semelhante no dia 6. Calcamos nossa amizade também nessa viuvez de quem ainda jovem demais perde quem ama e se vê incapaz de dar contorno a tudo que se foi junto desse alguém.
De forma tragicômica, nos acolhemos e trilhamos outros caminhos — apesar disso —, dando respiro a um espaço que, por muito tempo, foi deixado de viver com medo de perder.
Me encontro, novamente “pelo acaso”, com um amor-companheiro sobrevivente, irmão mais velho como meu e que, em alguma medida, também morreu.
Ele quem me apresentou novos termos, outros nomes e um novo dialeto que costura diferentes caminhos para contar a história não só de 1 noite, mas dos últimos 9 anos e 9 meses.
Com isso, parte de um processo íntimo meu de me despir do constrangimento e do véu que cobria meu olhar enquanto as histórias da Kiss que habitam em mim, aconteceu.
Neste ano (2022) eu passei em frente a Kiss e vi essa ruína em detalhes mais vezes do que em todos os outros 7 anos que morei em Santa Maria.
Agora não é mais evitável olhar, não é mais evitável ouvir, não é mais evitável sentir. Me envolvi em trabalhos e projetos que contornam, contam e confrontam essa história de sobreviventes, mães, pais, irmãs, amigas, primas e namoradas que se entrelaçam com minhas perdas, com meus vazios, com dores muito familiares e também com a minha memória e história.
Hoje a gente vive, de novo, uma UFSM com calendário “desregulado”, assim como em 2013. Me encontro agora no final do curso, assim como meu irmão também estava em 2013.
Hoje, tento, nos espaços possíveis em mim e pra mim, me demorar no ouvir e no falar das palavras, investigar na(s) memória(s), rastros daquilo que não se pode esquecer.
Hoje seguimos também vivendo com uma legislação falha e com locais mal regulamentados, com réus impunes dessa tragédia-crime e com uma juventude que segue à mercê e aos ataques. Hoje, 27 de outubro de 2022.