ATHOS RONALDO MIRALHA DA CUNHA – ESCRITOR
Estamos acostumados, diante dos descalabros da nossa conjuntura, a dizer que o fundo do poço tem ralo ou que isso não me surpreende.
Afinal, são tantas as bizarrices faladas e cometidas que nada nos assombra. Mas trabalho escravo na serra gaúcha e envolvendo três renomadas vinícolas é de causar espanto.
Aqui uma breve pausa para tamborilar com os dedos na mesa. Essa história me deixa reflexivo. Quem sabe um cálice de malbec argentino me ajuda na reflexão?
A gente fica surpreso pela simbologia do vinho: brinda-se à vida com um tinto, com espumante. Congregamos os amigos e abrimos uma garrafa de cabernet. E tanto pode ser o Lote 43 da Miolo ou o Sangue de Boi da Aurora. O que importa é tilintar os cálices. Sejam eles de cristais ou cristal Cica.
O Vale dos Vinhedos é um lugar aprazível. Muito lindo. Tudo é monumental e organizado. As empresas são modelos de eficiência. Um setor da economia que ostenta, suas sedes são verdadeiros castelos.
[A expressão Casa Grande será usada um pouco mais abaixo.]
Quando se fala em trabalho escravo no Brasil o que visualizamos? O Brasil profundo e longe de tudo. De difícil acesso a jornalistas investigativos. Uma fabriqueta de fundo de quintal ou de sobreloja na 25 de março em São Paulo. O Brasil dos invisibilizados da sociedade. O Brasil que não tem o que comer. O Brasil que cata quinquilharias. Os excluídos.
Talvez seja precipitado vincular os lucros das vinícolas ao salário e direitos não pagos aos trabalhadores, mas é o que me leva a pensar.
Estamos percebendo uma nova Casa Grande e novos senhorios. E bem aqui pertinho. Mas não bastou a evidente denúncia das vinícolas, teve ilustre cidadão que tentou explicar e apelou para os argentinos.
As empresas deveriam contratar os argentinos e especificou os porquês. Pois os baianos só sabem tocar tambores. Então, o patriota e vereador faz um discurso na câmara de Caxias do Sul e eleva nosso índice de estupefação na vigésima segunda potência. Um discurso recheado de xenofobia, aporofobia, racista e preconceituoso. Só faltou dizer tintim no final da fala.
Lembre-se quando for rodar um tinto da serra gaúcha, no seu cálice sinta os aromas de frutas vermelhas, carvalho, lembranças de chocolate amargo e nos vinhos brancos você pode sentir gosto de maçã verde e uma leve adstringência.
E, por fim, sinta o retrogosto com notas de sangue. Enfim, eu toco bumbo-leguero, mas tenho o atenuante de ser neto de uruguaios. Então, vereador, tem vaga?