Paralelo 29

Penélope

Ilustração/Reprodução

EDINARA LEÃO – ARTETERAPEUTA, ESCRITORA E PROFESSOR

Não. Não foi da soleira da janela que ela olhava. A vida por esses tempos não era tempos de contos de fadas, em que moças casadoiras olhavam pelas janelas, ávidas de sair da janela e a vida fazer andar.

Tempos outros. Ela não conhecia a parte da casa que se chamava janela. Tão atucanada de andar. Fazia letras e as montava sobre cadernos e livros e andava pelas avenidas da cidade. Nunca por andar.

Havia uma necessidade além do romance. Andava a trote que mais cedo chegaria. Entontecida da maluquez que era tanto correr. Por nada? Não, nunca. Não. Por nada, não. Pela necessidade da vida. Dizia.

Então, ela não o viu chegar, encolhida dentro dos livros. Escrevia e escrevia. Revisava e revisava. Depois os apagava para ninguém ler. Tinha medo de que o destino na escrita pusesse os olhos. Tinha medo de tocá-los. E, talvez, quem sabe, adulterar.

Seria uma sandice, sem precedentes, mudar a sina das gentes com essa coisa de enegrecer palavras sob um eixo do papel. Descobrira que na mitologia, Penélope destecia.

Tempos bonitos, dizia, acreditando na existência de uma Penélope real com idade real em um tempo real. Todos os livros, afinal, eram reais, e ela acreditava.  Tempos remotos, mas bonitos.

E ela, Penélope desses tempos de barro, não sabia tecer, não tinha agulhas para fazer a bendita colcha. Ela desescrevia para não acontecer. A Penélope não se casaria com o pretendente errado. [Todos pretendentes errados]. Para não casar, apenas.

Ela sequer pensava em casar, destecia a colcha de palavras para escapar das mãos do destino. Ele poderia ser impiedoso, enfim, ela já vira dentro e fora dos livros e da vida que lia, a implacabilidade das tempestades. E ela sem querer dava-lhe tantas dicas.

Quando desescrevia, destecia tudo. Apagadas das linhas, as palavras ficavam alucinadas dentro da casa. Sim, não era da soleira da janela, isso que eu queria dizer desde o início.

Nunca consigo chegar ao início. Estou Penélope hoje nessa grande colcha sem rabo. Rabo, não, seria deselegante dizer. As palavras precisam ser tecidas com jeito, cauda, deveria ser a escolha. Então, chegamos assim ao início desta escrita.

Ela dentro da casa. Não na soleira da janela. Sem soleira, [as casas de agora não têm soleira], ela roubara a palavra de outros tempos. Com destinos de sóis. Gostava há muito de misturar tempos e palavras.

As palavras fora do tempo. Fora do lugar, bonitas ficavam. Sentar no sofá, nunca soubera o que queria dizer, então as palavras roubavam a cena, sentavam no sofá. Sem sol.

Ensolaravam a casa por assim dizer. E moldavam o silêncio. Sem saber que naquele dia, o sol nem abriria seu tecido. Ela a revirar palavras tortas. Ele entrou. Aqui começa a história.

O fio do tecido foi puxado de fora a fora. Havia chegado o moço. Não do destino. Trazido pelas palavras. Prenhe de palavras mornas. Chegara o moço. Ela não era dada a chegadas. Só os via partir. De outras casas, sem soleira. Poucas janelas. Rios de dor.

Ela os conhecia já pelo tecido das jaquetas. Conhecia-os de costas. De partidas e de lágrimas da vizinhança. Nunca vira algum deles de frente. Muito menos em sua casa.

Não quis tecer o olhar na colcha sem cauda do destino. Ficou a bem palavrear. Tecia e destecia palavras a sua frente. Meio tonta. Meio burra. Não sei achar outra palavra para esta deselegância. Porque era isso mesmo. Ela não sabia o que fazer com o homem de jaqueta cinza ou bege. Era noite. Eram amplas.

O homem magro. E ela a tecer palavras. Esquecida do homem. Ele, que burro não era, enchera a mão de livros. Quis partir. Ela o convidou ao mundo dela. Para a plenitude da palavra mal escrita.

Seria ele um consertador de palavras num avariado reino perdido? Seria ele o que faz parar acurvado tecido. Ele, anunciado entre reinos de um destino desconhecido, fingia não entender nem de palavras nem de destino. Ele burro não era.

Sim, minha senhora, devo pedir desculpas, a palavra é inadequada, eu sei e fere a paisagem das outras palavras. Descabida, diz a moça delicada. Mas é essa a palavra. Não vivo de catar palavras. Eu e eles formamos uníssono par. Elas que escolhem se juntar à malha do pano que teço.

Nem sei por que me desculpo. Sou eu que tomo a mão da escrita nesta manha que já tarda acordar. Então, começou o enredo pelo desenredo. O moço, de corpo franzino e jaqueta cinza ou bege, sentou, tomou os livros e quis partir. Leitor amigo, diria Machado, até aqui você já sabe, sabe também que teço destecendo. Esta história mais se enovela que se desenrola.

Pedida a permissão da palavra, o moço sentou a alma no sofá da sala. Sem janela. Sem soleira. Sentou com as palavras. Tecido invisível do destino. Convidou-a para a soleira.

Ela, triste por largar as palavras que tecia, acabou por abandoná-las a bem do moço bege, ou cinza.  Era noite e os olhos do escuro anuviavam a visão.

Abandonou as palavras, que se arrependeram de tanto atrapalhar o destino. Pegou a mão do moço. Sem pressa. Atentou a doçura dos olhos e a crueza do destino não viu. Nem quis ver.

Pularam os muros da sala. A casa estava em construção. A história também. Teceram uma viagem de beijo. Depois o encontro dos corpos. Depois tramaram as almas. Enrolados de peitos e seios. Paro por aqui. Não quero estragar-vos o enredo. Porque houve desenredo.

O moço partiu, sem olhar para trás. Desceu as escadas, ultrapassou as areias do destino e não mais voltou. O casaco cinza ou bege foi visto uma vez mais pelas palavras opacas que o destino desteceu.

Desculpa, moça bonita, que esperava disso romance para seu lânguido suspiro. Os tempos são outros. O romance se meteu na destecida soleira da janela antiga. Anacrônico para tempos sem janelas.

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