ATHOS RONALDO MIRALHA DA CUNHA – ESCRITOR
“O cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde”. (Millôr Fernandes)
Gaudêncio Gonçalves era um homem muito rude, instruído e formado em Agronomia, mais muito rude. Um grosso de marca maior. Diria que era mais grosso do que dedo destroncado. E tinha uma verdadeira ojeriza a padres. E, por esse motivo, era considerado ateu pelos seus vizinhos.
A antipatia entre o padre Prado e Gaudêncio era recíproca, e o padre também ajudava a disseminar a sua alcunha de ateu. Uma pequena vingança por ele não pagar o dízimo. Gaudêncio, o único do povoado que não contribuía com a igreja.
Espalhava que Gaudêncio era ateu ferrenho, um descrente convicto de qualquer coisa que tivesse a mínima relação com o divino. Para ele, Deus era apenas uma figura criada pela mente humana para lidar com o desconhecido e para justificar o injustificável.
Gaudêncio não dava a mínima. Padre gosta de dinheiro e de filar boia na casa dos paroquianos, afirmava, seguidamente, para contrariedade dos vizinhos e nariz torcido do pároco.
Se alguém ousasse falar sobre o poder da oração ou o auxílio divino, ele logo retrucava. Nada o fazia mudar de ideia, afinal, sua lógica era incontestável: padre e dinheiro foram feitos um para o outro.
Mas Gaudêncio era missioneiro. Um Tronco Missioneiro de raízes guaraníticas. E usava seguidamente a Cruz de Caravaca – a cruz de quatro braços – na lapela.
Afirmava que a cruz não era profissão de fé, mas, sim, seu certificado de origem: “nasci, moro e morrerei nas Missões. Sou missioneiro com muito orgulho e não sou missionário”.
Certo dia, uma gripe inesperada atingiu-o com toda a força. Com o nariz vermelho e olhos lacrimejantes, Gaudêncio enfrentou a batalha contra o vírus, incansavelmente.
Um gripão daqueles! Tomava todo tipo de chá que tinha no quintal. Sentindo-se fraco e vulnerável, ele balbuciou: “se existe algum Deus, por favor, cure-me dessa terrível gripe!”. E acrescentou: “oh, São Sepé, dá uma ajudinha também”. E, para sua surpresa, a gripe persistente começou a ceder.
Pura coincidência, pensou Gaudêncio. Eu sou um tronco missioneiro e estou reagindo ao vírus, concluiu.
E não levou muito a sério o seu pedido a Deus e de ajudinha de São Sepé. Mas a gripe, ou gripão, foi arrefecendo.
Gaudêncio, ainda se recuperando, cruzou com duas freirinhas – uma idosa, a madre superiora Maria das Graças, e a noviça Maria das Dores – enquanto caminhava na praça central, em frente à igreja. A madre superiora, notando seu aspecto cansado, sorriu gentilmente e disse:
— Que bom vê-lo melhorando, meu filho. Rezei por você. Aparece na igreja meu bom Gaudêncio. Bonita a sua cruz na lapela. É a Cruz Missioneira? Linda.
O ateu convicto estava prestes a soltar um comentário sarcástico, mas algo o deteve. Ele apenas sorriu de volta às freiras e agradeceu o convite.
Nos dias que se seguiram, Gaudêncio passou por uma mudança gradual e curiosa. Ele começou a notar pequenos milagres cotidianos que antes passavam despercebidos.
Coisas simples, como o nascer do Sol, a beleza das flores, um casal de cardeais, um quero-quero gritão. Ele começou a questionar sua própria arrogância ao pensar que a ciência explicava tudo. E que padre só gostava de dinheiro e de encher a pança.
E assim, aos poucos, Gaudêncio viu-se balançado entre o mundo da razão e o da fé. Ele ainda era o mesmo cético, mas agora com um toque de humildade.
Percebeu que a fé não precisava ser excludente, que a crença não tinha que anular a razão. Ele podia aceitar o mistério da vida e ainda apreciar o conhecimento científico.
Então, num domingo pela manhã, foi para o centro e, no horário da missa, entrou na igreja. Com a cruz missioneira na lapela.
Na hora das oferendas, o padre Prado falou para o sacristão começar pelo fundo da igreja e que passasse a caixinha para o Gaudêncio. Queria ver a contribuição do tal missioneiro de cepa.
E, claro, Gaudêncio não depositou uma moedinha sequer na urna. E olhou direto nos olhos do padre Prado.
— Eu não dou dinheiro para padre, falou baixinho e compassado.
E, por incrível que pareça, o pároco leu os lábios de Gaudêncio e quase se engasgou com a hóstia.
Gaudêncio beijou a cruz na lapela e retirou-se da igreja.
— Era só o que me faltava.
[*] Crônica selecionada para participar da “Coletânea Centenário de Millor Fernandes”.
Projeto Apparere. PerSe editora.