ALESSANDRA CAVALHEIRO – JORNALISTA
Era verão e minha filha recém tinha desistido de ir a Santa Maria. Um dia antes, suas amigas foram para a Kiss, ela viu fotos nas redes.
No começo da madrugada de 27 de janeiro, aqui em Floripa, Manuela me chamou. “Mãe, morreram umas 20 pessoas lá na Kiss, meus amigos estão lá”.
Pensei nos meus primos jovens que moravam na mesma quadra, porém na Venâncio Aires. Fiquei alerta e comecei a rezar. Na madrugada, pelas redes, os números foram chegando.
Naquela noite explodiu na cidade uma bomba levando a todos o grau máximo de emoções, sentimentos profundos de dor, tormento, desespero, com um impacto tão devastador que a alegria correu para bem longe e até hoje é procurada.
O fogo veio, beijou a noite, começando com uma pequena bolinha azul e envolveu a todos com seu calor tão intenso. Devastou, promoveu as mais distintas vulnerabilidades, variados graus de dor, medo, pânico e pavor. As peles caíam dos braços, os cabelos eram puxados, os sapatos no caminho, os 242 jovens plenos de vida, beleza, sonhos, viam seus corpos derretendo.
A fumaça que ardia, os olhos pretos, a vida terminando no escuro da noite. Os corpos no chão, buracos na parede, em vão. A vida se esvaindo, em chamas. O fogo, enfim, deixou sua marca.
Dezenas de chamadas em todos os celulares, escrita a palavra mãe, aquelas que caíram de joelhos, desfaleceram. A lembrança nunca apaga, a dor nunca termina, a agonia é constante.
Os corpos entrelaçados nos banheiros, a busca alucinada, os gritos lancinantes, um pouco de ar, um pouco de vida. Caminhões de corpos, o desafio para os bombeiros, para os médicos.
As famílias em romaria, buscando os seus, olhando os céus com um fio de esperança. Nos olhos, um mar profundo de lágrimas.
Quanto tempo leva para curar? Onde foi parar a alegria?
Daqui da Ilha fico pensando: como podem, até hoje, essas famílias angustiadas, implorando por justiça? São 11 anos de caos, polêmicas, desentendimentos, mas também de muito trabalho de reconstrução, muita superação. Cada um acolheu os familiares como seu coração mandou.
Infartos, pressão alta, antidepressivos, o quadro adoecedor que ficou. Como pode isso tudo ainda não ter alcançado um desfecho? Como?
A paz nos corações virá aos poucos, mas as implicações sociais desta tragédia precisam ser resolvidas com urgência. É preciso ensinar ao mundo como não fazer o entretenimento à noite, mostrar a existência dos riscos, clamar com força para que não se repita em lugar nenhum, nunca mais.
Para que assim, de alguma forma, acalmem-se os corações e surjam somente as memórias da alegria que existiu no minuto anterior ao beijo do fogo.
Sim, gritar ao mundo: não é assim que se faz! Não é mantendo um caos, alimentando o desentendimento. Não espantando ainda mais a alegria.
Nas minhas orações, clamo para que a redenção se faça. Minha Santa Maria, o lugar dos estudantes e seus mil sonhos!
Com a presença viva da arte, da cultura, do conhecimento, que se refaça a vida pulsante deste povo que, 11 anos depois, já está merecendo voltar a sorrir!