Paralelo 29

Irmã Lourdes Dill comemora 55 anos de vida missionária em um país que tem a fome e conflitos religiosos como desafios

Irmã Lourdes com criança africana/Foto: Arquivo Pessoal, Divulgação

JOSÉ MAURO BATISTA – PARALELO 29

Religiosa que passou a maior parte da sua trajetória em Santa Maria relembra sua chegada ao convento

Há 55 anos, em 24 de fevereiro de 1969, a filha de agricultores Lourdes Maria Staudt Dill deixava sua terra natal, São Paulo das Missões, para ingressar na Congregação das Filhas do Amor Divino, na cidade vizinha de Cerro Largo, nas Missões. Atualmente, em Moçambique, na África, Irmã Lourdes Dill comemora a data.

Em missão religiosa no continente africano desde outubro do ano passado, Irmã Lourdes, de 72 anos, postou um texto em suas redes sociais para lembrar a data.

Em uma entrevista ao Paralelo 29 neste sábado, Irmã Lourdes Dill falou com exclusividade sobre como é a adaptação em um país de imensas riquezas naturais que ainda enfrenta situações de pobreza extrema resultantes de 400 anos de colonialismo português.

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“Este é o chamado que Deus me fez quando tinha 6 anos de idade. A data de hoje, 24 de fevereiro, completa 55 anos que deixei minha família e a casa dos meus pais irmãos e amigos com minha QuerÊncia Amada e fui até o Convento das Filhas do Amor Divino em Cerro Largo.

Hoje é um dia de gratidão a Deus, à intercessão materna de Mari a mãe das Vocações e a todas as pessoas que são parte desta bela desafiadora e profética História.

GRATIDÃO a minha família, à Congregação das Filhas do Amor Divino e à grande multidão de pessoas que ao longo destes 55 anos caminharam comigo, contribuíram na minha formação e me ajudaram chegar até aqui com saúde e vigorosa vitalidade e energia com Profecia é Fé para a Missão em Moçambique África.

Há 55 anos atrás nunca poderia imaginar que o futuro destino seria África. Que DEUS abençoe, recompense e ilumine a todos e todas que fazem parte deste belíssima História e digo com Madre Francisca Lechner – Nenhuma alegra sem um obrigado a Deus – e com o Papa Francisco – Não deixem que vos roubem o entusiasmo missionário”. Gratidão a todos minha prece, meu apoio e sintonia.

Irmã Lourdes Dill – Filha do Amor Divino, Missionária em Moçambique, continente africano

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Uma vida dedicada ao cristianismo

Em documentário produzido em 2011 pela TV Ovo de Santa Maria, Lourdes Dill falou sobre sua trajetória

Filha dos agricultores Silvinius Dill e de Emelda Staudt Dill, Lourdes Maria nasceu em 29 de setembro de 1951, em uma família de 11 irmãos em São Paulo das Missões, um pequeno município de 5,8 mil habitantes, na região das Missões.

Segunda mais velha, Lourdes Maria ajudou a cuidar dos irmãos e, nos intervalos da escola, ajudava na lavoura, conforme contou em um documentário produzido em 2011 pela TV Ovo de Santa Maria.

Nas idas ao colégio, ela e os irmãos percorriam três quilômetros, a pé, da casa à escola. A família era muito religiosa, cristã, e também bastante politizada, com intensa participação na vida da comunidade, segundo o relato ao documentário.

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Vocação descoberta ainda na infância

Aos 6 anos de idade, descobriu sua vocação religiosa durante a visita de uma freira em sua casa. Era um dia muito frio de chuvoso de inverno, quando uma irmã de nome Ana Eberling.

“Estávamos todos reunidos, já era escuro, fim de tarde, ela veio a cavalo lá de Cerro Largo, e estávamos sentado ao redor do fogão tomando chimarrão e na conversa ela perguntou quem gostaria de ser irmã ou padre. Aí eu levantei a mão e disse: Eu quero ser. E foi nesse momento que eu me sensibilizei para a vida religiosa”, contou Lourdes Dill no documentário.

Aos 18 anos, ingressou no Juvenato da Congregação das Filhas do Amor Divino, em Cerro Largo. E fez a sua primeira profissão religiosa em 30 de janeiro de 1977.

Na sua trajetória religiosa, Irmã Lourdes Dill trabalhou em Cerro Largo, Santo Cristo, Porto Alegre e Campo Mourão (Paraná). Mas foi em Santa Maria, a partir de 1987, que Lourdes Dill viveu a maior parte da sua vida e dedicou-se às causas sociais, principalmente à agricultura familiar e à economia solidária.

Mais de três décadas em Santa Maria

Lourdes Dill mudou-se para Santa Maria a convite do então bispo diocesano de Santa Maria dom Ivo Lorscheiter, um religioso alinhado às causas progressistas da Igreja Católica e que bateu de frente com a ditadura militar.

Dom Ivo tinha em mente a criação de um projeto social vinculado à então Diocese de Santa Maria que trabalhasse com a inclusão de famílias pobres e vulneráveis. Assim, nascia o Banco da Esperança e, mais tarde, o Projeto Esperança/Cooesperança.

Durante mais de três décadas, Irmã Lourdes Dill esteve à frente do Projeto Esperança/Cooesperança. Nesse período, irmã Lourdes ajudou a criar o Feirão Colonial e a Feira Internacional do Cooperativismo (Feicoop), que, com suas feiras paralelas, transformou Santa Maria em uma referência internacional da chamada Economia Solidária, que tem como princípio uma proposta alternativa à economia capitalista de grande escala que caracteriza o agronegócio.

A transferência polêmica

Em dezembro de 2021, logo após ser irmã Lourdes ser tema de uma reportagem nacional sobre economia solidária no programa Globo Repórter da Rede Globo, o arcebispo metropolitano de Santa Maria, dom Leomar Brustolin, anunciou a transferência da religiosa para o Maranhão.

O anúncio de mudanças na coordenação do Projeto Esperança/Cooesperança e principalmente da transferência de irmã Lourdes geraram protestos de movimentos sociais e de lideranças da cidade, sobretudo aquelas vinculadas a causas defendidas pela religiosa.

No entanto, o arcebispo manteve sua posição, afirmando que se tratava de uma decisão interna da Congregação Filhas do Amor Divino. Irmã Lourdes ficou em Barras do Corda, no Maranhão, de 2 de maio de 2022 a outubro de 2023, quando partiu para Moçambique, na África, para uma missão de dois anos.

Uma nova missão na África

NO MEIO DO POVO: Irmã Lourdes rodeada de crianças em uma aldeia de Moçambique/Foto: Arquivo Pessoal

Irmã Lourdes conversou neste sábado (24) com a reportagem do Paralelo 29. Atualmente, ela está participando de um curso de “inculturação” que iniciou em 4 de fevereiro e vai até 1º de março.

Além da pobreza, o país também enfrenta conflitos religiosos. Em algumas regiões, grupos ligados ao Estado Islâmico tentam avançar à força, o que tem gerado ataques a missionários de outras religiões, sobretudo católicos. Apesar disso, irmã Lourdes diz que na região em que vive não mais guerrilhas.

“Muita luta e sacrifício”

“O país tem uma cultura própria e uma história sofrida devido às guerras e ao domínio dos portugueses. Apenas em 1975 o país obteve a independência. Na nossa região não tem mais guerrilhas, mas a pobreza é muito grande. O povo planta de forma muito primitiva para sobreviver com luta e sacrifício”, descreve.

Nas regiões do interior, a alimentação básica é um mistura de mandioca, arroz, amendoim e farinha de milho. Geralmente, os alimentos são cozidos em fogo de chão. A infraestrutura também é um desafio porque muitos serviços não chegam à população.

“Não tem água, luz elétrica, asfalto…”

“Na região que moramos a maioria não tem água em casa, a população carrega de balde, de longe. Também não tem luz elétrica e não tem Internet. A gente compra o cartão mensal com os dados móveis para o telefone. Também não tem asfalto”, conta a missionária.

Irmã Lourdes destaca que a população tem muita fé e participa ativamente da vida na Igreja Católica. “Aqui predomina a religião católica, mas o islamismo é muito forte”, diz.

Aprendendo a realidade local

VIDA DIFÍCIL: Casas de uma comunidade rural são cobertas de capim/Foto: Arquivo Pessoal

Participam do curso 13 missionários oriundos de quatro continentes e nove países, incluindo o Brasil. são nove padres, três religiosas e um leigo. Há cinco brasileiros, sendo quatro gaúchos e um de Santa Catarina. Segundo Irmã Lourdes, “é um grande aprendizado”.

“O curso oportuniza uma ampla formação sobre a realidade de Moçambique, sua história e desafios passados vividos na guerra e na independência de Portugal. Nas palestras, é apresentada a realidade social, política, econômica, educacional, sistema de saúde. A agricultura ainda é bastante primitiva, e o povo do meio rural trabalha basicamente para sua subsistência”, explica Irmã Lourdes.

Os missionários se réunem em Anchilo, próximo à cidade de Nampula, sede da província e da arquidiocese. O idioma oficial é a Língua Portuguesa, mas são falados vários dialetos. O Macua é uma língua nativa muito falada, principalmente no meio rural. Por conta disso, todos os dias os missionários têm uma hora de aula para aprender esse idioma local.

UM PAÍS CHAMADO MOÇAMBIQUE

  • A ocupação de Moçambique por Portugal começou com a chegada do navegador português Vasco da Gama (1469-1524)
  • A Guerra Civil de Moçambique, conflito armado que começou em 1977 após a independência do país do domínio português, durou 16 anos e deixou cerca de um milhão de mortos em combate e por conta da fome. Estima-se que mais de 8 milhões de pessoas fugiram do país no período
  • Moçambique faz fronteira com Tanzânia, Maláui, Zâmbia, Zimbábue, Essuatíni e África do Sul
  • O país tem cerca de 32 milhões de habitantes, sendo seus maiores centros urbanos as cidades de Maputo, Beira e Nampula
  • A economia é basicamente primária, baseada na produção de grãos e criação de animas. No entanto, no interior, a população produz apenas para comer
  • A infraestrutura é bastante precária. Em muitas regiões, sobretudo na área rural, não há água, luz, telefone, internet, e as ruas são de chão batido
  • O pais africano é rico em recursos naturais, como ferro, bauxita, mármore e pedras preciosas, que durante anos foram apropriados pelos colonizadores portugueses
  • Duas religiões predominam oficialmente em Moçambique: 56% são adeptos do cristianismo, enquanto 18% seguem o islamismo; outros 26% da população praticam crenças diversas
  • A República de Moçambique, como o próprio nome diz, é uma república presidencialista. Economicamente, está na lista dos 10 países mais pobres do mundo

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