Paralelo 29

CÁ ENTRE NÓS: O glorioso 8 de março, só que não

Foto: Tânia Rêgo, Agência Brasil

ALESSANDRA CAVALHEIRO – JORNALISTA

Vou abrir meu coração, caros leitores. Tenho uma vergonha enorme de dizer que já sofri violência por ser mulher. Já vivi assédio sexual, assédio moral, violência doméstica, física, psicológica, de uma forma que não existia no meu imaginário.

Desigualdade na renda, preconceito de todo tipo, como por ser solteira (solteiras são muito perigosas, tomem cuidado!).

Um sentimento misturado com medo, dor, culpa por ter perdoado algumas vezes e sentido na pele mais agressões. Medo de denunciar.

Culpa por ter passado uns dias tentando compreender as razões. Muitas vezes pensei: por que eu nasci? Não vale a pena viver.

Quando lembro de tudo o que já ouvi, então, dá arrepios: alguma coisa ela fez por merecer, pois que lixo de mulher se sujeita a algo assim?

Essa aí não se valoriza mesmo. Achou a **** no lixo. Vai ver, gosta de apanhar. Deve ser um fetiche. Mas que mulher tapada, não toma uma atitude para se valorizar, é bem coisa de mulher, mesmo.

Não vai ter competência para essa tarefa, é fraca. É uma vagabunda que se sair na rua vai querer outros. Por aí vai. Confere?

Ter um sentimento pelo agressor e ter de desfazê-lo de uma hora para outra, mais pessoas da família para cuidar, a vida para tocar, não importa.

É culposo permanecer no esquema, mesmo sem forças emocionais para reagir. Mesmo atirada em uma cama sozinha, chorando, desanimada da vida, no quarto escuro. A dor física passa. A emocional, jamais.

Ficamos esperando para ver o que vem depois. E haja terapia, estudos, autoconhecimento. Muita gente aconselhando e dando palpite. Poucas pessoas com escuta qualificada. É duríssimo resolver internamente. 

Fazendo uma prova ou trabalho importante de olho roxo (que depois vai ficando de várias cores e não há maquiagem que resolva) e mentindo descaradamente que bati num armário. Tão comum, não?

Recebendo olhares e um silêncio barulhento por onde vou, carregando minhas dores. Carregando o constrangimento, o peso e a amargura do desamor puro e simples de quem se acha superior, mais forte e no direito de agredir com palavras, gestos, objetos, enfim. Carregando meu corpo e autoestima bem pequenos, precisando dar sorrisos falsos por aí.

No dia 8 ganhamos uma flor

Protesto contra o machismo/Foto: Fernando Frazão, Agência Brasil

As palavras acima são minhas, mas poderiam ser de tantas mulheres, não é? E assim, gloriosamente, temos 1 dia no ano em que ganhamos uma flor no trabalho por sermos quem somos, os parabéns nas redes, aquele olhar de admiração por vencer os desafios de existir na condição feminina. Agradeço calada, pensante. Porém, mesmo no glorioso 8M, a realidade continua. Os números estão aí.

Sangue na TV

Ligue a TV nos noticiários e você vai ouvir sobre crimes contra as mulheres que são notícias diárias, comuns. Mas jamais normalize! Diante do cenário, meu grito deste 8M não poderia ser outro: chega de feminicídios!

Quem dera eu precisasse escrever, neste Dia Internacional da Mulher, somente sobre os problemas de equiparação salarial, preconceitos em geral ou desigualdade na distribuição das tarefas domésticas, tapas, socos e arranhões.

O grito neste 2024 urge ser sobre a violência doméstica e o feminicídio. São tempos bárbaros. Mulheres sendo mortas, violentadas, machucadas física e psicologicamente por serem quem são.

Alguns números

Mulheres em manifestação contra a violência de gênero/Foto: Agência Brasil

Vamos lá: dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), mostram que o Brasil é o 5º país com maior número de feminicídio, ficando atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e da Federação Russa.

Três a cada dez brasileiras já foram vítimas de violência doméstica, de acordo com a 10ª Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, feita pelo Instituto DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV).

Em 2023, uma mulher foi morta a cada 6 horas no Brasil. Quantas foram mortas em Santa Maria? Neste 8M vão pipocar notícias e números sobre esta realidade, porque ela continua. Observe. Informe-se.

Quanto aos homens

Perceba que no cenário violento da atualidade, morrem muito mais homens. Mas você raramente vai ouvir que eles morrem por serem homens. São crimes relacionados a roubos, violência policial, discriminação racial, social, etc.

Ódio aos homens? Jamais. É um sentimento inútil. Acho mesmo que os agressores precisam de ajuda para lidar com sua triste realidade. 

E claro, não dá mais para aceitar a certeza da impunidade, a ajuda do amigo rico, famoso, influenciador. Cumpra-se a lei. Sempre lembrando que mulheres também agridem.

Ponderemos! Às vezes, aparecem notícias sobre homens picadinhos no freezer, carneados numa mala, tendo seus órgãos genitais decepados. Não é incrível?

A mulher que sou agora

Estou convencida de que o trabalho interno deve ser incessante. Contemplar as realidades, conectar com algo muito maior, perdoar, ficar alerta aos perigos e me preservar.

Sim, tenho muito valor, assim como você tem valor. Sim, sou capaz de coisas que nem imagino. Você também. Mulher, apoie outras mulheres. Seja grande e não rivalize. Dê as mãos, solidarize-se.

É na corrente de nossos braços que ficamos mais fortes. Um dia, todos os dias serão nossos dias, e de todos. Eu sonho. Eu acredito. Por enquanto, um feliz e abençoado 8M para todas!

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