Para órgão, resolução do CFM contraria regras internacionais e estigmatiza pessoas em razão de suas características sexuais
O Ministério Público Federal (MPF) encaminhou uma recomendação ao presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM) para que revogue ou anule a Resolução 1.664/03 publicada pelo colegiado, que prevê investigação precoce para definição de gênero/sexo de crianças intersexo.
A norma considera “o nascimento de crianças sem sexo determinado uma urgência biológica e social” e estabelece que o procedimento cirúrgico nesses casos deve ser feito o mais precocemente possível, com o objetivo de adequação ao sexo masculino ou feminino.
A Recomendação 12/2024 foi emitida pela procuradora da República Ana Paula Carvalho de Medeiros, em inquérito aberto no Rio Grande do Sul.
O termo intersexo é usado para se referir a pessoas com características sexuais que não se encaixam inteiramente no conceito típico de feminino e masculino. A resolução do CFM trata essa condição como “anomalia de diferenciação sexual”, o que, segundo o MPF, é discriminatório.
“A expressão patologiza e estigmatiza pessoas em razão de suas características sexuais, induzindo à realização de cirurgias e outros tratamentos não-essenciais”, afirma a procuradora no documento.
Segundo o Ministério Público Federal, esse tipo de abordagem e orientação para a realização de cirurgias de designação sexual em crianças para enquadramento a padrões sociais contraria orientações internacionais, assim como a própria legislação brasileira.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual o Brasil integra, recomenda aos países-membros que realizem as modificações necessárias em suas legislações e políticas, a fim de proibir os procedimentos médicos desnecessários em crianças e adultos intersexo, quando sejam realizados sem seu consentimento prévio, livre e informado, exceto em casos de risco médico ou de necessidade.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) também garante aos menores o usufruto de todos os direitos fundamentais “sem discriminação de sexo”.
De acordo com a recomendação do MPF, para preservar a integridade física e mental das crianças é preciso “assegurar-lhes um ambiente que promova seu desenvolvimento saudável e pleno, em consonância com os princípios fundamentais dos direitos humanos e a proteção integral que lhes é devida”, sem fazer uso de “intervenções cirúrgicas invasivas e irreversíveis”.
Além de recomendar a revogação da resolução, o MPF também quer que o Conselho Federal de Medicina, no caso de emitir nova regulamentação, siga as diretrizes listadas pela Procuradoria Federal do Cidadão (PFDC), em nota técnica publicada em dezembro (Nota Técnica nº 6/2023), especialmente:
- não caracterizar a intersexualidade como patologia
- à exceção dos casos em que a intervenção seja necessária à preservação da vida e da saúde, não realizar procedimentos cirúrgicos em pessoas intersexo, para fins de conformação aos padrões feminino/masculino, até que elas tenham idade ou maturidade suficientes para tomar decisão própria e informada sobre o tema
- proibir intervenções médicas motivadas por questões sociais em pessoas sem idade ou maturidade suficientes para consentir
O que mais diz o MPF
O documento pontua ainda que as crianças intersexo que apresentem risco de saúde ou vida em razão dessa condição devem passar por tratamento médico ou intervenção cirúrgica com o objetivo de salvar suas vidas, sem que sejam realizados procedimentos desnecessários e precoces, baseados em estereótipos de sexo e gênero.
Além disso, sempre que essas pessoas precisarem de cuidados de saúde, os serviços devem ser prestados por equipes multidisciplinares compostas não só por médicos, mas também por outros profissionais, tais como psicólogos, assistentes socais e especialistas em bioética. O CFM deve responder ao MPF se acata a recomendação no prazo de 90 dias.
O documento emitido pelo grupo de trabalho (GT) População LGBTQIA+: Proteção de Direitos da PFDC defende que ninguém deve ser submetido a procedimentos médicos invasivos ou irreversíveis que modifiquem suas características sexuais sem o seu consentimento livre, prévio e informado. No caso das crianças, a PFDC argumenta que cirurgias devem ser adiadas até que essas pessoas adquiram condições para dar o seu consentimento sobre o procedimento.
Nota técnica
“Longe de haver urgência social para a realização de cirurgias designadoras de sexo, o que há é uma urgência de que sejam prontamente banidas essas cirurgias precoces, desnecessárias, torturantes, mutiladoras e realizadas sem o consentimento da pessoa intersexo”, aponta a nota técnica.
Diversos países como Portugal, Alemanha, Grécia e Malta já ajustaram suas legislações para atender às recomendações das organizações internacionais e reivindicações do movimento intersexo.
Além disso, alguns países e estados norte-americanos já preveem a possibilidade de registro civil com outros marcadores de sexo e gênero, além do masculino e feminino: Malta permite o registro do gênero “X”, Alemanha de gênero “diverso”, Nova Iorque prevê o termo “intersex” e Califórnia o “não-binário”.
No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) já regulamentou a possibilidade de preenchimento do campo “sexo” nos assentamentos de registro civil com a opção “ignorado.
Além disso, o estado da Bahia e o próprio Rio Grande do Sul já garantem o direito de retificação do registro, pela via administrativa, para a exclusão da anotação de gênero feminino ou masculino e a inclusão da expressão “não binário”.
(Com informações da Assessoria de Comunicação Social da Procuradoria-Geral da República/PGR)