Editorial comenta reações a vídeo de motorista jogando carro sobre cavalo para atingir homem que estava montado no animal
As reações dos internautas a um vídeo sobre um motorista que atropela um cavalo para atingir o homem que estava montado no animal suscitam uma reflexão profunda sobre os tempos atuais.
As imagens, que foram publicadas nos Reels do Paralelo 29 no Instagram mostram o momento em que a ação acontece, no pequeno município de Vista Alegre, no Rio Grande do Sul.
Pelo vídeo é possível ver o motorista atropelando o cavalo com a intenção de, segundo a Polícia Civil da cidade, causar a morte de quem estava em cima do animal. Tanto que o caso é investigado como tentativa de homicídio.
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Preocupação com o cavalo
O vídeo viralizou, e assim como no perfil do Paralelo 29, nas postagens feitas por outros veículos de comunicação e perfis de pessoas, os comentários também chamam a atenção. A grande maioria deles mostra preocupação tão somente com o cavalo.
Não que a agressão ao animal não seja chocante. Ela deve, sim, ser condenada, e o autor da tentativa de homicídio também deve responder por maus-tratos a animais ou algo do tipo. Contudo, não se pode, de maneira alguma, fazer uma leitura seletiva dos fatos.
Independentemente de quem estivesse no lombo do animal, ali estava um ser humano. Mesmo sem saber se a vítima humana do atentado é um pai de família, um trabalhador e uma pessoa correta dentro dos parâmetros entendidos pela sociedade, as pessoas simplesmente passaram a perguntar exclusivamente pela saúde do cavalo. E deram a atender que a agressão ao animal é o único crime a ser punido.
O que gera comoção
Esse tipo de comportamento tem sido frequente nas redes sociais. As pessoas se comovem bem menos – quando se comovem – ao verem um post de uma criança de rua passando fome do que ao verem um cão na mesma situação.
Aliás, em muitos casos, os animais de rua são até mais bem tratados. Da mesma forma, quando uma pessoa é flagrada furtando (isso mesmo, sem arma e sem ameaça) um pacote de bolachas em um supermercado, as reações são de uma reprovação desproporcional.
Já houve casos recentes de aprovação da sociedade a punições severas a meninos que apanharam e foram atados em postes para exposição pública por cometerem pequenos delitos.
É possível que o pensamento da sociedade sempre tenha sido assim e que as manifestações de ódio ou menosprezo ao seu semelhante tenham apenas ganhado mais visibilidade com as redes sociais. Afinal, hoje se tem conteúdo novo e acessível a milhares de pessoas a cada segundo.
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Polarização contribui
É bem possível também que a polarização política e ideológica no país e no mundo tenha dado impulso a manifestações de raiva e ódio entre as pessoas. Assim, resta-nos transferir o afeto para os animais em um mundo idealizado na cabeça de cada um.
Mas, engana-se, “quem nunca atirou a primeira pedra”. No livro “Nem Anjos Nem Demônios”, o filósfo Mario Sergio Cortella e a monja Coen, fundadora da Comunidade Zen-budista do Brasil, desmistificam a idealização do ser humano e explicam que sentimentos como a empatia e a compaixão são coisas que se cultiva ao longo da vida. Não são natos, mas possíveis.
Já o psicólogo Ricardo Barros, que há anos estuda agressores, ressalta que o ódio pressupõe a indiferença e quando odiamos alguém, essa pessoa se torna indiferente para nós.
Assim, o desaparecimento dela nos é indiferente e, às vezes, é até um alívio e motivo de satisfação e alegria. Transpondo isso do particular para o geral, vê-se que há uma indiferença generalizada de parte da sociedade em relação a seus membros.
Barros conclui que a espécie mais sociável da Terra é também aquela queé capaz de cometer as maiores atrocidades contra seus semelhantes. Diz ele: “Todos somos capazes de amar desmesuradamente e de odiar como ninguém”.
Guerras e desigualdade afloram manifestações de ódio
Essa preterição ao ser humano não é exclusiva ao Brasil. Ocorre em todo o mundo. Tampouco os humanos são ou estão mais cruéis que seus antepassados de milhares de anos.
Mas houve, sim, um tempo não tão longínquo em que a compaixão e os afetos eram mais salientes. Em que se acolhia mais, a ponto de acreditarmos na utopia de um mundo melhor. Um tempo que deixamos para trás a Idade das Trevas.
No entanto, as pessoas em geral também se cansaram de ver tanta impunidade e de conviver em um mundo tão desigual. As guerras voltaram em pleno século XXI, ideologias que pregam o ódio ao semelhante e a aniquilação a qualquer custo do cocorrente ou adversário estão cada vez mais presentes. E as consequências estão aí.
A civilização precisa se recivilizar
Diante de tudo isso, é imperativo dizer que o mundo precisa se recivilizar. O Brasil precisa se recivilizar. O primeiro grande desafio brasileiro é superar o lado nefasto da polarização política.
É imperioso que se punam crimes mais graves com penas mais agravadas e que se acabe de vez com a impunidade sem discursos retrógados e populistas.
E é preciso que se puna exemplarmente crimes cometidos por agentes do Estado. Não deve haver espaço para justiçamentos e para condenações sumárias. Muito menos para aplicação de penalidades não existentes na legislação penal.
É preciso mais democracia. Em todos os sentidos. A começar por uma educação ampla, humanista e acessível a todos.