Paralelo 29

LOUISE: A ruptura com o Ocidente em Burkina Faso: uma leitura descolonial

Foto: Divulgação, Presidência de Burkina Faso
LOUISE DA SILVEIRA – LICENCIADA EM LETRAS PELA UFN E MESTRA EM GEOGRAFIA PELA UFSM

A recente ruptura com o Ocidente promovida pelo presidente de transição de Burkina Faso, Ibrahim Traoré, representa um marco histórico na busca pela autonomia política, econômica e cultural de uma nação africana historicamente submetida às dinâmicas do colonialismo e do neocolonialismo.

Essa iniciativa, que inclui a expulsão de tropas estrangeiras, o rompimento de acordos bilaterais com a França e a formação de alianças regionais, pode ser interpretada à luz das teorias decoloniais como um movimento de superação da “colonialidade do poder” (Quijano, 2005), da “colonialidade do ser” (Mignolo, 2007) e da episteme eurocentrada que molda os projetos de desenvolvimento no Sul Global (Santos, 2008).

Em janeiro de 2022, o tenente-coronel Paul-Henri Sandaogo Damiba assumiu o poder após liderar um golpe contra o então presidente Roch Marc Christian Kaboré.

No entanto, a persistência e agravamento da insegurança no país levaram à insatisfação generalizada, inclusive dentro das Forças Armadas.

Assim, em setembro do mesmo ano, o capitão Ibrahim Traoré liderou uma nova intervenção militar, destituindo Damiba sob a justificativa de que ele havia se afastado das promessas de soberania e eficiência militar.

Esse processo não pode ser reduzido a um simples conflito interno por poder, mas deve ser compreendido como expressão das tensões estruturais herdadas do colonialismo.

Para Aníbal Quijano (2005), a “colonialidade do poder” continua a moldar as elites africanas, muitas vezes cooptadas por interesses estrangeiros e comprometidas com projetos de Estado que reproduzem a lógica eurocêntrica. A substituição de Damiba por Traoré foi interpretada por setores populares como uma tentativa de ruptura com essas alianças neocoloniais.

Segundo Walter Mignolo (2007, p. 32), “a desobediência epistêmica é uma reorientação da geopolítica do conhecimento”.

A ascensão de Traoré, fortemente amparada em discursos anticoloniais e na evocação da memória de Thomas Sankara¹, representa um gesto de desobediência à ordem geopolítica imposta, apontando para uma reconstrução da legitimidade política baseada em valores africanos e em projetos de soberania popular.

Segundo Aníbal Quijano (2005), a colonialidade do poder consiste na persistência das estruturas de domínio colonial mesmo após o fim formal do colonialismo. Tais estruturas se manifestam na economia, no Estado, na produção do conhecimento e na identidade.

Em Burkina Faso, essa colonialidade se expressou por meio da manutenção do franco CFA e da dependência militar da França.

Ao romper com essas estruturas, Traoré busca retomar o controle soberano do Estado, propondo uma confederação regional e um novo modelo de cooperação baseado na reciprocidade e na solidariedade africana.

Walter Mignolo (2007) introduz o conceito de “colonialidade do ser” para explicar como a subjetividade dos povos colonizados foi historicamente negada. Para o autor, o ser dos povos africanos foi subalternizado, negado, tratado como ausente de história.

A ruptura com o Ocidente, nesse contexto, não é apenas política ou econômica, mas ontológica: trata-se de afirmar a humanidade plena dos povos africanos, seu direito à autodeterminação e à existência para além das categorias impostas pelo colonialismo.

Boaventura de Sousa Santos (2008) propõe as “Epistemologias do Sul” como uma forma de valorizar os saberes produzidos por comunidades historicamente marginalizadas.

A aposta de Burkina Faso em modelos próprios de segurança, economia e cultura pode ser lida como uma tentativa de construir alternativas epistêmicas ao modelo ocidental.

A criação de instituições africanas e o incentivo a líderes comunitários reafirmam a validade de outros modos de conhecer e governar.

¹Thomas Sankara foi um líder revolucionário militar e presidente de Burkina Faso entre 1983 e 1987. ² Os fulanis, também conhecidos como fulas ou peul, são um povo nômade que se espalha por vários países da África, especialmente na África Ocidental.     

 A ruptura também aponta para a tentativa de enfrentamento do racismo sistêmico e geográfico. Segundo Maria Lugones (2020), a colonialidade de gênero e de raça estrutura as formas de opressão contemporâneas.

Em Burkina Faso, a violência contra os fulanis² é um exemplo de como a etnicização do conflito serve à reprodução do Estado autoritário. Uma verdadeira descolonização exige o enfrentamento das violências internas e o reconhecimento das diferenças como fundamento da democracia.

O movimento de ruptura com o Ocidente, liderado por Ibrahim Traoré, é um gesto político radical que se insere nas lutas decoloniais por soberania, dignidade e justiça.

Longe de ser apenas um realinhamento geopolítico, trata-se de uma tentativa de reconstruir o Estado a partir de fundamentos africanos, de superar o racismo sistêmico e de propor uma nova geografia do poder. Inspirado por teóricos como Quijano, Mignolo, Santos e Lugones, esse processo aponta para um futuro onde o continente africano não é mais periferia do mundo, mas centro de sua própria história.

Referências

QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. CLACSO, p. 117-142, 2005.

MIGNOLO, W. La idea de América Latina: la herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa, 2007.

SANTOS, B. DE S. (2008). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 80, p. 5-10, 2008.

LUGONES, M.. Colonialidade e gênero In: CartaCapital. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br , 2020.

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