Paralelo 29

MEL INQUIETA: Três poemas com ferrões de abelha africana

Mel na Sina Carnavalesca, evento promovido pela Rede Sina, na edição de 2020, na Gare. Na foto também aparece Nina, filha da atriz Karina Maia/Foto: Dartanhan Baldez Figueiredo

Conhecida por sua sensibilidade artística, seja como atriz, seja como escritora e poeta, a jornalista Melina Guterres, Mel Inquieta, dá voz à inquietação de muitos.

Por isso, vários de seus poemas têm, inevitavelmente, contornos políticos. Uns mais explícitos, outros menos.

Na seleção que fez para o site Paralelo 29, Mel Inquieta fala de uma mulher negra, feminista e política que morreu assassinada por conta de sua defesa da população pobre, discriminada e excluída.

MEL INQUIETA: Cinco poemas e uma crônica sobre lugares

Um crime sem respostas

Em “Marielle”, a poeta homenageia a vereadora Marielle Franco, do PSOL do Rio de Janeiro, executada a tiros, juntamente com seu motorista Anderson Gomes.

O crime político que chocou o país, ainda não elucidado, completou três anos no último 14 de março.

Mel em ato para cobrar justiça pelo assassinato de Marielle Franco/Foto: Dartanhan Baldez Figueiredo, Divulgação

Há uma série de perguntas sem respostas, sendo a principal delas “Quem mandou matar Marielle?”

Quem quiser conhecer mais a produção poética, literária e jornalística de Melina Guterres é só seguir Mel Inquieta no Instagram.

MEL INQUIETA: Três poemas e um manifesto em tempos covidianos

MARIELLE

Mulher negra da Maré,

Socióloga, guerreira, política

Fez da voz sua guerrilha

Marielle que luta tão bonita

Alimentou almas tão famintas

E partiu assim…

Brutalmente assassinada, executada!

Por acreditar em nós!

As mulheres têm sede de justiça

Marielle sua voz, vem e fica!

Não vamos te esquecer!

Não vamos nos calar!

Teu corpo tiraram de nós,

Tua luta seguirá…

Na nossa voz!

MEL INQUIETA: Dois poemas e uma cena para encerrar o Mês da Mulher

Ferroadas nos rumos da política brasileira

Já no segundo poema, “Urubus”, Mel faz uma crítica contundente ao caminho político que o Brasil resolveu trilhar nos últimos anos.

“Tenho o coração afivelado com grades que lembram a escravidão/Vejo a democracia em desconstrução/A vaidade sobrevoando a justiça”, escreve.

No terceiro poema, “Engasgos”, Mel Inquieta cospe fogo ao falar das mortes violentas, atribuídas a “balas perdidas” que não são tão perdidas assim.

Seu poema nomina vítimas, dá seus nomes para que não fiquem como meras estatísticas.

Também da violência de gênero, que vitimou mulheres trans em Santa Maria nos últimos anos.

E, por fim, vale um trocadilho: com seus favos de mel africano, a poeta manda às favas políticos e outros detentores de poder tratados como “heróis do momento”.

Com a contundência de um ferrão de abelha africana, o poema que se engasgou também é de capaz de engasgar tantos quantos ousarem duvidar do que as palavras são capazes.

Não há dúvidas que nessa colmeia de poemas há ferrões afiados e com veneno de abelha africana prontos para defender a democracia, a educação, a saúde, o meio ambiente, os excluídos, e, sobretudo, a vida.

Confira o poema “Urubus” na voz da autora.

Foto de Marcos Prado, autor do premiado documentário Estamira, que conta a história da mulher que, por mais de 20 anos, sobreviveu em um lixão do Rio de Janeiro. Estamira morreu devido a uma infecção no braço/Reprodução: Agência Brasil

Mel recita em homenagem ao Dia Mundial da Poesia

URUBUS

Tenho o coração afivelado com grades que lembram a escravidão

Vejo a democracia em desconstrução

A vaidade sobrevoando a justiça

Derrubando a nação

Petróleo e reservas florestais em leilão?

 Cortes na saúde, na educação ?

Tenho o coração amordaçado

O meu grito sufocado

E até e-mail invadido por outra nação

Teoria da conspiração?

Vejo o olhar cansado dos humanistas

Uma luta em pequenas mídias

Gente que busca averiguar informação

E outra que se contenta com o que recebe

Não questiona, não critica, reproduz e reproduz

alienação !

Sinto que há problemas pra quem foge da cegueira.

Sinto um arrepio na espinha,

Sinto a bandeira em poucas mãos

E o sangue, o suor do brasileiro escoa, escorre, é roubado… em alguma lei “sangue-suga” votada numa quarta-feira do futebol… Goll

Uma facada nas costas, um mordida do drácula, judas em reprodução ao plim plim milionário Poderes sobre poderes, controles que nem sequer imaginamos… Nosso ouro, nossa dignidade vai… se esvai..

Urubus rondam, urubus atacam, urubus…colonizam!

Brasil colônia 2018

ENGASGOS

Hoje meu poema tá engasgado

Na cegueira alheia

Na falta de noção

No senso comum

Sem apuração

Hoje meu poema engoliu a saliva

Silénciou, passou fome,

frio, invejou nações onde democracia não é comida de leões.

Hoje meu poema cuspiu fogo!

Sentiu o véu do passado,

feito alvo no corpo do cidadão,

80 tiros em Evaldo, Agatas, Marielles, Marias e Joãos.

No poema “Engasgos”, Mel fala da violência que mata pessoas da periferia, sobretudo negros/Foto: Reprodução, Instagram

Hoje meu poema morreu na esquina,

Com a Carol, Mana, Verônica e toda mulher trans, mulher cis assassinada

na censura ao artista, na falta de recurso,

na educação retrógrada,

na tal pós verdade escandalosa,

na boca do ministro que acha que entende de nazismo mais que alemães,

nas convicções de um ex-juiz que agora faz social com a burguesia pedindo aprovação de uma previdência escravagista, no prefeito que faz piada sobre a tragédia da cidade que administra, no ódio que eles declamam aos jornalistas.

Nesses “heróis” de momento,

erguidos por interesses,

sustentados pela falta de discernimento de um povo sem o hábito de leitura.

Hoje meu poema se engasgou

Compartilhe esta postagem

Facebook
WhatsApp
Telegram
Twitter
LinkedIn